Massimo Di Felice é professor da USP
Jornal Pires Rural – Edição 224 | SÃO PAULO, Janeiro de 2019 | Ano XIII

A Constituição estabelece que o Estado brasileiro seja regido por três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Mas existe um quarto poder; a imprensa, que está encarregada de fiscalizar os três poderes originais e cuja missão é exigir que cumpram suas obrigações. O seminário “Jornalismo: as novas configurações do Quarto poder”, teve a proposta de discutir o papel da imprensa na atualidade, diante de um perplexo segmento em crise. Realizado na unidade do Sesc da Vila Mariana, em São Paulo, o evento reuniu mais de 50 profissionais experientes e reconhecidos na sua área de comunicação. Tratando do tema “Fake News – O caos/cosmo da informação digital” estavam Rodrigo Flores, Ivana Bentes (cuja matéria foi publicado na edição 221 do Jornal Pires Rural, que pode ser acessado em www.dospires.com.br) e Massimo Di Felice, que trazemos nesta edição, suas considerações a respeito de Fake News. Massimo é professor da USP, diretor do centro internacional de pesquisa Atopos e diretor do Instituto Toposofia de Roma (Itália), além de fundador da rede internacional de pesquisa Sustenibilia, da Universidade La Sapienza, de Roma.

Professor Massimo, tentando esclarecer a transformação da qualidade e da própria natureza da informação na atualidade, época do Big Data (termo que descreve o grande volume de dados — tanto estruturados quanto não-estruturados — que sobrecarrega as empresas diariamente mas, não é a quantidade de dados disponíveis que importa; é o que as organizações fazem com eles) traça um ponto de partida dizendo que no contexto de hiper conectividade, não devemos fazer referência a palavra informação no mesmo sentido da ideia de formação na época da imprensa, da época da mídia de massa, na época da Tv, na época do rádio, isto é, “na época do Small Data (são dados que são “pequenos” o suficiente para a compreensão humana. São dados em um volume e formato que os tornam acessíveis, informativos e acionáveis, isto é, da esfera pública moderna – jornais, televisão, rádio etc. O termo “Big Data” é das redes digitais contemporâneas – robôs e máquinas e “Small data” é sobre pessoas), hoje, a natureza da informação foi alterada”, ressaltou.

Revoluções por minuto
Primeiro ponto de partida em como era a natureza da informação na época dos Small Data: nascia pronta, haviam (poucos) grandes canais que produziam e disseminavam a informação. Essa informação não poderia ser modificada tecnicamente, chegava ao receptor pronta, estampada na capa de um jornal impresso. “A notícia estava dada, poderíamos concordar ou não mas, não havia como modificar tecnicamente, alterar ou intervir na informação publicada. Então, a disseminação da informação na época do Small Data, tinha uma quantidade limitada de informações por dia. Todos os grandes canais de imprensa, decidiam todos os dias, quais eram os argumentos sobre os quais deveriam refletir ou opinar. Além de ser um tipo de informação muito cara, o que gerava uma não autonomia econômica do produtor de informação. A dimensão da informação mudou completamente nos últimos 10 anos. Mudou através da introdução de outros tipos de conectividade. Quando nós falamos de internet devemos considerar que tivemos já 6 tipos de revoluções de diversas internet”, avaliou. Comparando com a história da humanidade, passamos por umas poucas revoluções comunicativas; a passagem da oralidade à escrita – no quarto milênio antes de Cristo. Depois a passagem da escrita para a imprensa com a invenção da prensa de tipos móveis de caracteres do alemão Johannes Gutenberg, no século XV. Depois a eletricidade, à mídia de massa na primeira e segunda revolução industrial e, depois nos anos 90 a internet, totalizam 4 revoluções comunicativas”, explicou.

Massimo Di Felice durante seminário “Jornalismo: as novas configurações do Quarto poder”
Quem medeia o universo da informação de massa autogerada? Os velhos critérios de noticiabilidade ainda resistem? A produção massificada de notícias falsas existem para confirmar o que as pessoas querem que seja verdade?

Inteligência artificial
Última geração de conectividade é a internet “das coisas”, que gerou um novo tipo de conectividade, além de produzirem informação entre humanos, banco de dados e dispositivos, começou a permitir qualquer tipo de superfície, qualquer tipo de objeto passar a se comunicar, por onda de rádio e a produzir informações e disseminá-las, resultado? “Mais de 70% das informações, que hoje circulam na internet, não são produzidas por humanos”, disse o professor convidando a plateia a um exercício: “imaginamos a quantidade de informações, neste momento, em que cada ser humano, com seu smartphone esteja produzindo e disseminando na rede, aqui em São Paulo. Agora, imaginamos isso no Brasil inteiro, imaginamos no mesmo período de tempo, no mesmo minuto, no mundo inteiro. Aumentamos isso 70% com a quantidade de dados que objetos, postes, árvores, ruas, camadas de gelo está emitindo informações. O resultado, nós temos uma quantidade de dados inalcançável para os seres humanos, incalculável, chamados Big Data. São quantidades de dados que não existe uma equipe de matemáticos que podem contabilizá-los. Eles são geridos por robôs, por algoritmos e por inteligência artificial. Nós podemos dialogar com esta quantidade de dados, somente através da mediação dessas inteligências não humanas. É o que faz a ciência quando estuda os genomas ou a quantidade de astros no céu. A nossa interação com a natureza, com o mundo, é mediada por inteligência não humana, isto é uma qualidade humana, isso não é um absurdo para os humanos”, revelou.

Desde Galileu (Galilei, italiano fundamental na revolução científica) a ciência conhece o mundo através da mediação de artefatos tecnológicos. “Isso significa que os Big Data tem uma natureza diferente, são geralmente definidos como a lei dos ‘3V’: velocidade, variedade e volume. São dados que tem variedades infinitas e também velocidade. A natureza desses dados não tem nada ver com a natureza dos dados de um texto escrito ou de uma imagem. Estamos perante um tipo de complexidade infinita, isto tem a ver diretamente com o jornalismo e com tudo; com a economia, com a medicina, por exemplo. Toda nossa contemporaneidade está deslocada numa dimensão de complexidade mais sistêmica. É nesse contexto que devemos ver as fakes news”, apontou.

Sistema operacional
Ele questiona: “quais são as características dos Big Data, então? Primeiro; sua natureza através da velocidade, variedade e volume. Depois a possibilidade de condição de todas as variáveis. Um dado, uma informação, hoje, através dos Big Data pode ser correlacionada com uma quantidade infinita de variáveis, isto é, ele pode alcançar o universo inteiro de interações entre variáveis. Segunda característica; automação, tipo de dados que estão ligados, a proliferação entre dados que se dá de uma forma sem intervenção humana. Uma característica extremamente importante que esses dados são inacabados, são emergentes enquanto conectados por variáveis e com outros dados, gerando outros dados, eles não são jamais, dados fixos. Todos os sistemas operativos de analise social, que estão ligados a utilização de Big Data, permitem o monitoramento dos processos, isto é, a possibilidade de acompanhar a transformação em tempo real dos dados. Então, passamos de um tipo de informação que era pronta com uma fotografia parada, para um tipo e uma qualidade de dados, não somente infinitos mas, em continua mutação. Isso nós leva a uma cultura da conectividade, da construção colaborativa constante. Não lemos mais uma notícia, não nos informamos apenas a partir de uma visão de uma informação, passamos a ser construtor do real. A interação com o Big Data, nos dá a possibilidade de produzir habilidades em diálogo com os dados, criar uma realidade. Obviamente, um custo marginal tendencialmente a zero. As informações nas redes não custa quase nada, ou nada. Isso significa uma autonomia econômica, é um dado importante para a possibilidade de manter uma pluralidade individualista e portanto uma pluralidade de informação”, analisou.

Obra aberta
“A minha leitura desse processo, dado brevemente esses explicações da natureza da qualidade dos dados na época do Small Data e na época do Big Data, a minha interpretação que está acontecendo com a informação, é a mesma coisa que aconteceu com a ‘Obra aberta’ ( livro escrito por Umberto Eco, em 1962, que reúne uma coletânea de ensaios a respeito das formas de indeterminação das poéticas contemporâneas, tanto em literatura, como em artes plásticas e música.) no século XX. No texto ele diz que a arte passava por um processo absolutamente inovador, isto é, deixava de ser uma obra pronta, deixava de ser uma produção estética formada, como uma escultura de Michelangelo ou uma pintura do Caravaggio, para se tornar enigmática, para se tornar uma obra abstrata, uma obra cubista”, ele abordou.
“Vou ler brevemente um texto escrito em 1962 mas, é muito atual, poderemos substituir a palavra ‘obra’ por ‘informação’: ‘uma obra musical clássica, uma fuga de Bach ou Aída, consistia num conjunto de variedades sonoras que o autor organizava em modo definido e pronto, oferecendo ao ouvinte. Essas novas obras musicais constituem, ao contrário, não por uma forma organizada e definida mas, um conjunto de possíveis organizações deixada a livre iniciativa do ouvinte, apresentando-se portanto, não como obras acabadas mas, como obra aberta que deve ser terminada pelo espectador no mesmo modo que passa a interagir com este mecanismo’. A poética da ‘Obra aberta’, promove no espectador atos de liberdades conscientes e o torna um centro ativo de um rede de relações infinitas, através dos quais ele está protagonizando, isto é, o que aconteceu na sua estética entre a ‘Obra aberta’ do século XX e o espectador, segundo Umberto Eco é exatamente o que está acontecendo hoje com os Big Data em relação a informação. Os dados não são mais prontos, hoje, qualquer notícia deve ser, não somente checada mas, através da lógica do Big Data e da conectividade, somos chamados a terminá-las e completá-las. Quando recebemos as notícias em nossa ‘time-line’ nós vamos adicionar comentários, nós vamos acrescentar um outra informação, nós vamos ‘linkar’ uma outra notícia e sucessivamente mandá-la adiante. Hoje, se informar significa contribuir a construção da informação. Acabou o público. Nós passamos a um tipo de sociedade onde os ouvintes, o que era público, tomou a palavra e através da tecnologia pode contribuir. Se comunicar hoje, significa colaborar com o processo de construção da informação. É extremamente positivo que existam fake news”, destacou.

Construção da informação
“Na época recente se tornou uso as palavras ‘fake news’ mas, sabemos muito bem que as fake news sempre existiram. A divulgação voluntária de notícia falsa ou de notícias com finalidades específicas sempre existiram, a grande impressa sempre divulgou isso, só que não se sabia, a postura era somente de aceitar a informação. Hoje, habitamos um contexto que sabemos que existe as notícias falsas, isso é um ato de emancipação, isso é um ato positivo. A única forma de impedir notícia falsa é a construção no ministério da verdade. Não existe forma de impedir notícia falsa, o melhor antídoto de notícia falsa é a lei”, opinou.

Informação é ficcional
“Terminando, digo que faz sentido a frase “all news is fake” (todas as notícias são falsas). A natureza da notícia, do ponto de vista filosófico, não faz parte da qualidade da verdade ou da falsidade. Uma informação pertence ao estatuto da qualidade ficcional. A palavra latina ficcional, não pertence nem da dimensão da verdade e nem da dimensão da mentira, é uma construção do conteúdo. A natureza da informação é ficcional, hoje. No contexto de conectividade, todos nós somos chamados a construir a informação, devemos escolher nessa quantidade infinita de dados, o que faz sentido, o que pode ser verificado e construindo isso, mandamos pra frente a informação. Do ponto de vista da democracia, meu modo de ver, é um grande passo a frente, pois, na tradição da democracia ocidental, o pressuposto da democracia não é a verdade, mas é a liberdade”, afirmou Massimo.
Em última analise professor Massimo detalha, “a dimensão contratual ou parlamentar, em um contexto social, é possível somente enquanto não existe uma verdade absoluta, por isso, toda democracia ocidental nasce leiga, baseadas em constituições escrita por humanos, porque tem seu pressuposto contratualistico na inexistência da verdade, e portanto a sua qualidade. Portanto, as fake news contribui a uma transformação que estamos vivendo, o fim do ponto de vista central. Não há hoje autoridade, autor, imprensa, televisão que possa ter uma consideração diferenciada em relação a qualquer outro tipo de proposição. Todas as proposições, inclusive a ciência, hoje, são disseminadas e são motivos de controvérsia. Tudo isso é muito parecido com a expressão do (Friedrich) Nietzsche, “até que enfim o mundo se tornou uma fábula”. Encerrou.

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