Jornal Pires Rural – Edição 230 | CAMPINAS, Julho de 2019 | Ano XIII
O Fórum: Ameaças à democracia e a atualidade dos direitos humanos, ocorreu na Unicamp com o objetivo de discutir democracia ameaçada, diante de um cenário de reconfiguração política. Seria possível afirmar que a democracia está em risco no Brasil? O que seria uma democracia sem direitos humanos? Como a sociedade brasileira vem reagir a esse cenário? Para responder a essas perguntas, veio do Rio de Janeiro, o Cel. Íbis Silva Pereira, PM-RJ e pesquisador do Núcleo de Identidade Brasileira e História Contemporânea da UERJ, onde integrou a mesa redonda que discutiu: ‘A atualidade da luta pelos direitos humanos’.
Cel. Pereira contextualizou, “eu quero falar um pouco da minha experiência como policial, no estado da federação que sofre muito com a violência, por conta dos desconcertos das políticas públicas. Sofre particularmente pelo perfil e pela especificidade da sua dinâmica criminal. O Rio de Janeiro tem uma dinâmica criminal muito diferente da dinâmica criminal de São Paulo”, apontou.
O Ipea realizou uma pesquisa, um relatório sobre a violência e dos indicadores criminais no Brasil, referente ao ano de 2017. Tomando como base os números de mortalidade do sistema de saúde e os números são muito ruins, em 2017, morreram vítimas de homicídios no Brasil 65.202 pessoas. “Isso significa que até no dia de hoje, 180 pessoas foram vítimas de homicídios no Brasil. Isso é um avião que cai todos os dias no nosso país. Mais de 50% dessas vítimas de homicídios são homens entre 15 e 29 anos de idade. 70% são negros, moradores de favela, são pobres. A idade mais perigosa, para o jovem pobre, morador de periferia no Brasil, é 21 anos. Se a pessoa é do sexo masculino e tem 21 anos de idade ele tem uma chance muito concreta de fazer parte dessas estatísticas”, afirmou.
Segurança pública
Segundo Cel. Pereira, a violência e a insegurança pública é um problema que vai muito além e não pode ser reduzido ao trabalho do policial. “A polícia faz parte mas, a gente não pode continuar reduzindo a segurança pública à polícia porque, constitui um problema político, da democracia. São 67% dos brasileiros que têm medo e, o medo evolui facilmente para o ódio, que explica muito das barbaridades que estamos vendo. Parcelas expressivas da população vivem submetidos, efetivamente, ao poder de fato, que não faz parte da constitucionalidade democrática. E nós, não temos tido competência de procurar soluções dentro dessa área que sejam compreensíveis para essa parcela da população. A direita se comunica de uma maneira muito mais brutal mas, parece fazer muito mais sentido. O sujeito estar com um fuzil na mão e deu um tiro na cabeça dele, isto, para uma parcela significativa do povo brasileiro, faz sentido – significa resolver um problema concreto que ele tem pela frente, que é viver debaixo do poder da violência”, comentou.
O coronel complementa, “a insegurança pública tem sido um grande obstáculo para vivermos no Estado Democrático de Direito, que tem a atividade da vida humana como princípio fundamental”. Para o Cel. Pereira, as polícias brasileiras poderiam ser órgãos vocacionados para garantia dos direitos humanos e, estão muito distante disso porque matam por dia, catorze pessoas. “Em nenhuma democracia as polícias matam dessa forma. A média do meu estado (Rio de Janeiro), tem sido cinco pessoas até esse ano. No novo governo já saltamos pra sete pessoas em apenas seis meses”, sustentou.
Constituição – 30 anos
“Eu entrei para a Polícia Militar em 1983. A nossa Constituição completou 30 anos no ano passado. Essa Constituição é a primeira sem o capítulo sobre segurança pública. Este capítulo permaneceu 30 anos sem regulamentação. Se tiverem a curiosidade de ler o artigo 144 que traz um rol de instituições que deveriam compor o sistema de segurança, no parágrafo 7 do artigo 144 a Constituição diz que a gente deveria regulamentar aquele dispositivo. O que significa isso? Significa transformar todos esses órgãos num sistema para que pudessem de maneira harmônica trabalhar pela segurança pública – demoramos 30 anos para fazer isso”, observou.
No dia 5 de outubro de 1988, época da promulgação da atual Constituição, os números da taxa de mortalidade por homicídios do Brasil era 10 por 100 mil habitantes. O número de presos era 220 mil pessoas. Hoje, após trinta anos triplicamos, são mais de 30 mortes por 100 mil habitantes e a nossa população de encarcerados chega a 730 mil – a terceira maior população de presos do mundo. “Para uma sociedade que diz que um dos seus objetivos fundamentais seriam construir uma sociedade livre, justa e solidária. Os números indicam que nós não cumprimos essa promessa. E digo o quão distante nós estamos do estado democrático de direito. Nós fracassamos”, afirmou.
Cel. Pereira chama a atenção porque, no ano passado, na vigência do governo Temer foi publicado a lei 3.665. “Leiam a lei! A lei é um primor! Ela não chega a lugar nenhum. Deve ter dado um trabalho danado elaborar uma lei daquela (um cachorro tentando morder o rabo). Você termina a leitura da lei e diz: pra que é que serve isso? Ela não chega a lugar nenhum. Nós não temos efetivamente condições de um sistema de segurança. A consequência prática disso é, por não termos um sistema de segurança, nós não temos como sustentar as políticas públicas de segurança em médio e longo prazo, porque as iniciativas louváveis (o Brasil tem algumas como o ‘Pacto pela Vida’ em Pernambuco que durante 10 anos obteve sucesso), não duram. Quando não tem sistema, as coisas dependem da vontade dos agentes. Sem sistema, as coisas ficam a depender da vontade de quem está sentado na cadeira. E as vontades mudam a cada dois anos porque a cada dois anos a gente vota. A cada dois anos os interesses dos políticos mudam e a gente não sai do lugar. Quando a gente consegue alguma coisa, elas não duram”, realçou.
O estado de São Paulo apresenta uma realidade um pouco diferente da realidade do restante do país, por exemplo, em 2017, foram investidos mais de 200 milhões em formações de inteligência. O estado do Rio de Janeiro gastou 2 mil e 470 reais. “A gente não tem sistema e política pública.
O decreto 9.489 regulamentou a lei que virou sistema de segurança e, estabelece como uma das determinações do governo central, elaborar um plano de redução da letalidade violenta com foco na juventude – onde está o plano?”, disse.
Sociedade militarizada
O atual governo inaugurou o seu mandato com um decreto de flexibilização de arma de fogo. Os números apontam, 80% das vítimas de homicídios no Brasil, são vítimas de arma de fogo. A principal causa de morte do jovem é a arma de fogo. “Será que esse é um modo de lidar com os excluídos, com a exclusão, com quem está fora da nova ordem de produção da sociedade capitalista? Eu presenciei a junção de duas tempestades. No primeiro momento nós saímos da ditadura, eu entrei para a Polícia Militar, em 1983. Na metade dos anos 70, nós vivemos uma grande crise do capitalismo, salvo engano, a primeira grande crise depois de 1945 e o capitalismo se reinventou de uma maneira muito brutal. A barbárie hoje, está incorporada à este governo. Quem está fora dessa nova ordem está condenado a continuar fora. Como é que você lida com isso? Não é por acaso que a vida está militarizada, a vida tem a lógica de guerra, o que fazer com o inimigo. Isso está incorporado na nossa vida porque é a ordem do dia”, ele observou.
Para Cel. Pereira, algo muito determinante, para entender o que estamos passando no momento, é ‘a guerra às drogas’, a partir de março de 1971. Ele diz, “a gente já vinha lidando com polícias militarizadas por conta da nossa tragédia local, a ditadura. Por conta da doutrina de segurança nacional que começa impregnar nas Forças Armadas, com a escola superior de guerra – pós 1948, início da Guerra Fria – isso ganha as polícias, sobretudo a partir de 1967, quando as polícias civis e militares, federais; são incorporadas à doutrina de segurança nacional como linha de frente da luta contra o inimigo interno (as drogas)”, relembrou. “Quando o Brasil está saindo da ditadura, reencontrando a democracia, repassando as instituições, o capitalismo reincorpora a ‘guerra a vida’, a ‘guerra às drogas’ que vai cambiar o inimigo. Quando a gente está saindo da ditadura, o inimigo não é mais o comunismo – é o traficante de drogas que passou a ocupar esse lugar”, afirma.
Cel. Pereira destaca que as políticas de segurança continuam sendo inspiradas pela lógica da guerra. “Em 1988 quando a gente decide fazer a Constituição e, pensar segurança pública ao invés de reinventar as nossas instituições, a gente incorpora as instituições já existentes à nova Constituição. Não mudamos isso. Não desmilitarizou as polícias, não reinventou as polícias – o que é uma insanidade. Porque produz resultados devastadores, que não paramos pra pensar como nosso modelo policial, com política de enfrentamento bélico em relação às drogas, produz essa matança na população brasileira”, sustentou.
De acordo com Cel. Pereira, o Brasil tem uma política de drogas focada na guerra, no enfrentamento bélico, um controle de polícias fragmentado nos estados, uma polícia civil que investiga mas, não patrulha. “A polícia que patrulha 24hs não investiga mas, ela patrulha e você tem uma política de drogas focada na ‘guerra’. Isso é devastador porque essa polícia que está na rua mas, não investiga e tráfico de drogas está relacionado ao crime comum e deve ser investigado. Mas, essa polícia que está na rua vai ser demandada a dar uma resposta à questão das drogas mas, ela não investiga. Como é que ela via responder ? Vai responder direcionando a sua ação pelo flagrante delito. Onde é que ela via encontrar esse flagrante delito? Não é nos condomínios onde se pede droga pelo telefone, porque pra isso ela tem que fazer um inquérito, quebra de sigilo telefônico – ela não pode fazer isso. Ela tem que dar essa resposta, onde ela possa identificar quem está envolvido com o tráfico de drogas, que é o inimigo público ‘número um’ da sociedade visualmente que é na periferia – nas favelas brasileiras”, afirmou.
Para encerrar Cel. Pereira avalia, “então, o modelo militarizado de segurança pública, com um modelo fragmentado de políticas policiais não dá certo. De cada 100 homicídios, nós apuramos 8. É o resultado de uma aposta equivocada, centrada numa perspectiva de confronto. O grande desafio que temos hoje, é compreender, que é fundamental repensar o formato das nossas instituições policiais, porque os policiais também são vítimas”, concluiu.