Jornal Pires Rural – Edição 242 | LIMEIRA, Junho de 2020 | Ano XV
Mariângela Pimentel Ferreira Barbosa, é enfermeira do Pronto Atendimento, no Hospital Municipal de Paulínia, há cinco anos. O esposo Alfredo Fidelis da Cruz também é enfermeiro, trabalha na Prefeitura de Campinas, há dez anos. Mãe da Júlia, uma moça de vinte anos e a menina Laura, de dois anos. Ambos fizeram o técnico em enfermagem no Cotil – Unicamp e se formaram em Enfermagem, na Uniararas. O curso habilita o enfermeiro para assistente, supervisor e gerente. Trabalhou no Hospital Santa Casa de Limeira, Hospital Medical, em Limeira, no Hospital Santa Casa de Piracicaba, onde ocupou o cargo de enfermeiro gerente – um cargo que exige muito mais e, o profissional tem que abrir mão da família. O casal abriu mão do setor privado para ter estabilidade e qualidade de vida no setor público. “Hoje, eu trabalho bem menos do que já trabalhei no passado, com uma carga horária e responsabilidade bem menor, eu faço plantão e venho embora pra casa”, disse Mariângela.
Quando adolescente Mariângela tinha o sonho de fazer medicina, fez o Colégio Técnico de Limeira – Cotil, e descobriu que gostava mesmo da enfermagem, por causa do cuidado e estar próximo do paciente. Trabalhou por sete anos como técnica de enfermagem, desde os dezoito anos, iniciou no Hospital Santa Casa de Limeira e na Unimed Limeira, trabalhava por doze horas todos os dias. Ela teve sua vida transformada pela escolha da profissão pois, abriu mão da sua vida social e familiar pelos plantões aos sábados, domingos, ficando noites e noites sem dormir. “Quando você começa trabalhar, você percebe que a dedicação a profissão acaba sendo uma das maiores dificuldades da área. As oportunidades aparecem e você começa e fica. Eu conheço pessoas que fazem 24h, eu já trabalhei com profissionais que tinham três empregos, trabalhavam no mínimo 36h direto, sem dormir, e quase não via alguém da sua própria família”, conta.
As oportunidades de trabalho na área da saúde são muitas pois, a demanda não é sempre preenchida. “A gente percebe que a pessoa (profissional) não consegue ficar sem um segundo emprego. A procura pelo segundo emprego começa com o anseio de ganhar um pouco mais para poder comprar alguma coisa e aí, a pessoa vai. Passado um, dois anos, a pessoa não consegue mais sair do segundo emprego; fica meio dependente. E, percebemos que os colegas que estão pra se aposentar, eles também não conseguem parar, querem ficar”, explicou.
Durante essa situação da pandemia vários profissionais permanecem por muitas horas sem descanso devido a sobrecarga da demanda por atendimentos, são muitos pacientes chegando e pouco recursos humanos. “É muito comum pra gente, presenciar os colegas sobrecarregados e cansados. Você vê que a pessoa está extremamente cansada, até verbalizando o estresse e mesmo assim, sair de um plantão e ir para o outro”, disse.
O casal de enfermeiros Mariângela e Alfredo se conheceram no trabalho, no hospital. “Dá certo pelo fato do marido conhecer e entender melhor a realidade da profissão. Isso influencia muito porque, por exemplo, é difícil explicar para uma pessoa que não seja da sua área que você vai ter que trabalhar na noite da véspera de Natal — não é todo mundo que entende. Não se trata de uma noite de Natal, são várias. Muitas vezes foi preciso trabalhar no dia do aniversário, não é sempre que você consegue estar em casa. É mais tranquilo o relacionamento com alguém que é da mesma profissão, entender — daí não é preciso nem explicar muito”, observou.
Quando ela engravidou da Júlia, a primeira filha, estava fazendo faculdade de enfermagem o dia todo e trabalhando em Limeira, no hospital Unimed a noite, foram três anos assim. “Eu nem vivi a maternidade direito porque ela nasceu durante o primeiro ano da faculdade, ela ficava com a minha mãe. Eu a via uma noite sim, uma noite não; quando eu chegava e, já ia dormir. Depois que eu me formei, trabalhei em Piracicaba, aí consegui ficar com ela e acompanhar o desenvolvimento, quando ela já tinha sete, oito anos — quando a minha situação estava mais estável. Eu nunca consegui ir em reuniões de escola, fazer a lição da escola com ela, era o meu marido que acompanhava a Júlia, pois, ele ainda não fazia faculdade na época (fez bem depois) e trabalhava mais a noite”, disse.
Há dois anos, nasceu a segunda filha do casal, desta vez, ela pôde viver bem mais a maternidade por estar num momento mais tranquilo, trabalhar menos e desfrutando de maior estabilidade.
O hospital onde trabalha atualmente, atende o município de Paulínia e região, como Sumaré e Cosmópolis. Mariângela trabalha na tão temida ‘linha de frente’ do hospital, o Pronto Atendimento, onde acontece o inesperado e, exige que os profissionais estejam sempre em alerta, tentando se preparar ao máximo para o que pode acontecer. “Alguns plantões não acontece nada, em outros chegam acidentados, jovens alcoolizados, o que nos que choca mais. A gente vê de tudo. Às vezes a pessoa chega achando que está bem e, quando faz os exames constata-se que não, está doente”, falou.
O que mudou no Pronto Atendimento com a chegada do novo coronavírus
“Mudou bastante. O primordial é o medo. Eu já trabalhei com pacientes de tudo quanto é patologias e eu nunca tive medo, nunca senti medo e, hoje eu tenho medo. É uma coisa que mudou radicalmente pra mim e para os meus colegas. Eu nunca vi os meus amigos com medo e hoje eu vejo. Nenhuma doença, nenhuma patologia causou tanto medo antes. Por exemplo, a tuberculose assusta, mas a gente nunca teve medo. Sempre trabalhamos com pacientes assim e nem tomava tanto cuidado, porque não tinha medo de ficar doente. Eu estava conversando sobre isso com um médico esses dias e ele me falou: ‘nossa, eu tenho medo, eu não quero (pegar o coronavírus)’. Eu lhe disse: eu sinto a mesma coisa. Ele verbalizou a mesma coisa que eu estou verbalizando pra você: ele deixava as crianças tossir na cara dele, quanto mais tossia, mais ele apertava a garganta da criança e nunca teve medo. E a gente de tanto lidar com esses pacientes doentes, criamos anticorpos, é muito difícil um colega ter pego tuberculose, ficamos imune à bactéria. A meningite assusta mais. Mas, mesmo assim o medo não é igual (ao novo coronavírus), é diferente. Esse vírus, Covid-19, veio pra assustar e mudar o comportamento. A gente está trabalhando no dia a dia com muito medo de pegar e de levar pra casa, isso é o pior”, apontou.
O dia a dia no Pronto Atendimento durante a pandemia
“Um dia você tinha que usar a máscara. No outro dia, tinha que usar a máscara e já tinha que colocar toda aquela roupa especial — equipamento de proteção individual (E.P.I.). No outro dia, os setores foram isolados para receber pacientes suspeitos. Então, nós fomos vendo as mudanças acontecendo no dia a dia. Muitas vezes a gente nem ficou sabendo; quando chegava para pegar o plantão as mudanças já tinham acontecido. Quando a gente percebeu estávamos fazendo uso do e.p.i. durante todo o plantão para atender todos os paciente que chegam. Usamos álcool em gel pra tudo, ficamos com um paninho limpando tudo, o tempo todo, o que nos deixa um pouco neuróticos. A gente percebe que mesmo com todos os cuidados ainda tem colegas que estão se infectando. Então, a gente tem que usar e.p.i. entre a gente, os cuidados não é restrito aos pacientes. Em certos momentos nós usávamos a máscara só quando estava perto dos pacientes, agora, a gente usa até entre nós porque não sabemos quem (dos colegas) está contaminado e quem não está. Muitos colegas nossos estão positivos (para o coronavírus), sem sintomas. Todos nós estamos sendo testados, eu fiz (o teste) na semana passada, o resultado foi negativo mas, a gente não sabe até quando. Se a gente bobear um pouquinho, se contamina. Um exemplo simples: eu usei a luva e estou de máscara, em algum momento do plantão se eu coçar o meu rosto ou os olhos, beber água, sem lavar as mãos antes, eu posso me contaminar. Ou se retirei as luvas e não lavei as mãos na hora contaminei aquela superfície, se alguém põe a mão naquela superfície que eu coloquei as mãos, se contamina”, revelou.
Ao citar o exemplo dos objetos pessoais Mariângela explica, “a gente chega com a bolsinha e tem que pensar onde colocar e higienizar o lugar antes. Coloca a bolsinha (com o mínimo de coisas, caneta), lava as mãos e se paramenta com o e.p.i.. Tem que tomar cuidado toda a vez de guardar a caneta no bolso, e passar álcool em gel antes. O erro na ordem de higienização do manuseio de qualquer coisa é o risco para se contaminar. São doze horas de plantão, são inúmeras às vezes que a gente põe a mão no bolso. E, pra ir ao banheiro já lavava as mãos antes e depois mas, agora lavamos também na hora de tirar e colocar o e.p.i. e se perder a ordem da higienização, acaba se contaminando”.
As refeições
“Antes das refeições tiramos todo o e.p.i., usamos a roupa que não teve contato com o paciente. Entramos no refeitório de máscara. Agora, nos servem a refeição no prato descartável. Retiro a máscara para comer e ao finalizar a refeição coloco de novo a máscara. Não podemos conversar entre os colegas dentro do refeitório, retiraram mesas e cadeiras para ter distanciamento durante as refeições. Ao sair do refeitório, se voltar pro P.A. veste todo o e.p.i. novamente. Não podemos mais fazer confraternizações. Antes de sair trocamos de roupa. Quando chega em casa, a primeira coisa é tomar banho. Alguns colegas se separam da família para não colocar os familiares em risco. Minha amiga enfermeira, há dois meses está morando longe do marido que é asmático”, relatou.
O relaxamento, descontração
“Tento não pensar muito, procuro me distrair com a filha, família. Não podemos sair porque somos aqueles que podem transmitir o vírus para os outros, ficamos em casa para preservar os demais. Temos a esperança de que alguém vai descobrir logo uma vacina e, que vai voltar tudo ao normal mas, eu não sei se teremos como voltar ao normal. Pelo que eu entendi a vacina demora para ser liberada, outros vírus que chegaram tem um período de alto índice de transmissão e depois cai. As pessoas conseguem ficar um pouco mais tranquilas. Talvez a gente consiga em algum momento se proteger somente com a máscara”.
O paciente com suspeita
“Geralmente o paciente que chega com suspeita, já está com os sintomas, chega bem preocupado, falando que estão com medo de morrer: ‘não quero morrer, Dona’. Ainda mais que chegam com falta de ar então, a sensação de morte, de faltar o ar, eu acredito que faz a pessoa pensar que está prestes a morrer. Chegam bem ansiosos, nervosos, falando que tem filhos pequenos, expressam o medo de ter contaminado alguém da família. Eu falo pra eles terem calma, que vai dar tudo certo, pra rezar e pedir a Deus, que não vai ser nada grave e que ele já está sendo medicado. Uma coisa que é muito difícil nessa doença é a partir do momento que chega no hospital, o paciente fica isolado então, ele não pode falar nem ter contato com mais ninguém da família. Alguns hospitais fazem uma transmissão do paciente para a família através da internet mas, essa não é a realidade que vivo não. A gente tenta ligar para a família para que a pessoa não fique totalmente sem o contato. Eu já liguei, a gente encontra a pessoa emocionada e agradecida, eu já fiz isso para um paciente jovem, com todos os sintomas que estava indo para um outro hospital para dar entrada na UTI. Ele estava muito preocupado com a esposa e o filho, eles não estavam no hospital na hora da transferência e, a gente ligou para avisar sobre a transferência e transmitimos para os familiares o que ele estava dizendo. Não sabíamos o que ele ia viver dali pra frente, talvez aquele seria o único momento de poder ter um pouco desse contato com a família. Ele falava o tempo todo: ‘eu não quero morrer, eu não quero morrer’, Mariângela descreveu.
Levantar e ir para o trabalho
“A gente fica mais ansioso para a chegada ao trabalho. Às vezes tenho insônia na noite anterior, fico com medo de como vou encontrar o P.A. porque, cada dia estão aparecendo mais e mais pacientes. Até um mês atrás, estava tranquilo por ser um hospital do interior, agora, diariamente tem pacientes entubados, chegam vários pacientes positivos, temos os nossos colegas com resultado positivo para o Covid-19. O coronavírus está tendo um avanço rápido e cada dia me dá mais medo”, detalhou.
O isolamento social
“A única coisa que eu acredito é no isolamento social. A gente (família) recusa todos os convites para os encontros familiares. Eu trabalho na saúde, eu uso todos os e.p.i., os meu colegas usam e mesmo assim, está havendo a contaminação. A gente está mais exposto e, se eu me expor mais o risco é maior. No dia a dia eu estou vendo que as pessoas que se expõe mais tem maior risco. As pessoas não estão preocupadas com o isolamento social, nós vemos isso na realidade do dia a dia do P.A., os pacientes chegam lá e muitos estavam no ‘rolê’, nas festas, se divertindo. Não existe o respeito ao isolamento social”, concluiu a enfermeira Mariângela.