Rodrigo Thurler Nacif, Antropólogo, Funai, Mestre em Geografia. Trabalhou por dez anos no estado de São Paulo e Rio de Janeiro, realizou trabalhos no levantamento da história de identificação das terras, a história dos esbulhos possessório – ocorre quando algum grupo humano ou mesmo que seja um indivíduo, uma família que tenham posse de uma área é expulsa, essa posse não necessariamente ela é reconhecida. “No caso dos indígenas, a Coroa Portuguesa não reconhecia esse direito originário dos indígenas sobre a terra – eles tomaram as terras e assim continuou o processo de colonização. A história é complexa, são mais de 500 anos, então teve mais de um esbulho possessório dos indígenas”, afirmou Nacif.
A conversa com Nacif tem o objetivo de explanar como ocorreu a expulsão dos indígenas no território que abrange o Vale do Ribeira, no estado de São Paulo, hoje, com alguns estudos que revisam a história dos livros didáticos. O país está em uma fase muito interessante, diante de várias possibilidades de revisão de seu passado graças ao trabalho árduo de pesquisadores.
Estamos publicando matérias sobre a situação dos indígenas no estado de São Paulo nas três últimas edições dão Jornal Pires Rural. Nesta nova edição, trazemos uma matéria a respeito das condições atuais dos indígenas no Vale do Ribeira, para entender de fato, não poderíamos deixar de aprofundar a explanação de Nacif sobre expulsão dos mesmos.
Século XVI
“Os portugueses começam a ocupar o litoral do estado de São Paulo tomando as terras dos indígenas, e os Guarani atacam ocupando o litoral, de alguma forma, uma parte dos indígenas é escravizada. No início da invasão portuguesa, houve a escravização dos indígenas – a escravização dos negros vindos da África é um processo posterior – principalmente onde era a Capitania de São Vicente. A capital São Vicente ocupava um território muito mais extenso para o interior e a principal economia era a captura de indígenas como principal “produto” de mercado dos bandeirantes. Havia um mal estar principalmente com a Igreja Católica porque alguns países proibiam a escravização dos povos indígenas, mas eles, naquela época, também tinham algumas formas de burlar essa proibição. Algumas vezes, até os próprios bandeirantes entregavam os indígenas para a Igreja Católica para serem catequizados – a Igreja permitia que algumas famílias cuidassem da catequização daqueles indígenas e estes ficavam devendo a essas famílias pelo benefício que estavam recebendo.
Ainda no século XVI, boa parte desse processo de escravização se dá no litoral. Algumas figuras mais conhecidas, o João Ramalho, por exemplo, ele se utilizava de uma aliança com os grupos Tupi para escravizar outros grupos. Esses indígenas eram levados para o Porto das Naus, em São Vicente – construído com mão-de-obra Guarani que vinha do Vale do Ribeira. No caso, como eles se aliaram com os grupos de São Paulo, os Tupiniquins; os portugueses organizavam expedições de captura de outros grupos indígenas entre eles, os Guarani.
Aí tem um outro detalhe, esse Porto das Naus quando foi construído – talvez o primeiro do Brasil, antes da fundação de São Vicente – o mentor da construção do Porto foi o Bacharel de Cananéia que é uma figura meio lendária da história do Brasil, pois, há quem diga que ele chegou aqui antes do próprio Álvares Cabral. A gente aprende na escola que o Álvares Cabral chegou aqui primeiro, porém existe bastante contestação dessa história porque naquela época haviam expedições secretas vindas tanto de Portugal quanto da Espanha. Há quem diga que o Américo Vespúcio passou por aqui antes do Cabral, e que o Duarte Pacheco Pereira, um militar português esteve aqui, antes também. Quando o Cabral veio com um grupo de naus e caravelas, foi com a perspectiva de oficializar a posse portuguesa.
Tem muitos historiadores sérios que dizem que antes disso, Portugal já tinha informação, assim como a Espanha, inclusive, que já tinham dividido o Tratado de Tordesilhas – e que tenha sido feito em cima de informações que eles já detinham. Porque se a gente for orientado pela historiografia oficial, até alguns poucos anos atrás, a gente só sabia o que era documento oficial o Tratado de Tordesilhas — na época, foi feito em cima de uma região que não se conhecia. Só que, se a gente pegar tudo o que foi levantado de informação recente por historiadores em cima de documentos, até então secretos sendo descobertos, a gente pode dizer que quando foi feito o Tratado de Tordesilhas já havia informações sim.
Justamente onde passava a linha do Tratado tem tudo a ver com a história do Vale do Ribeira. No início da invasão portuguesa e espanhola essa região foi disputada entre espanhóis e portugueses. Teve a guerra na região de Icapara, a Guerra de Iguape, SP, nesse período (1534 e 1536) os portugueses atacaram os espanhóis em Iguape e os espanhóis, em represália, atacaram São Vicente.
E esse Bacharel de Cananéia — não se sabe bem a identidade dele, a hipótese mais forte de que é uma pessoa de identidade Cosme Fernandes — uma pessoa com estudos, um erudito que por alguma razão se tornou persona não grata em Portugal, provavelmente, se tornou um foragido. Na época, as opções que as pessoas tinham ou era ser preso ou ir para as colônias, ele optou por se tornar um degredado. Ele faz então, uma aliança com os Carijós que é o mesmo povo Guarani – na época século XVI chamava Carijó. O Bacharel de Cananéia, que provavelmente era esse Cosme Fernandes, vêm numa dessas expedições militar que pode ter sido com o Duarte Pacheco, com o Américo Vespúcio, com o Bartolomeu Dias. Ele é deixado em uma praia justamente onde é o Vale do Ribeira , provavelmente na IIha Comprida, SP — eu já tentei fazer o cálculo de onde ele fora deixado porque a expedição do Américo Vespúcio é toda anotada e tem um momento que eles deixam o degredado a tantas léguas de onde foi colocado o marco do Tratado de Tordesilhas, o marco está na Ilha do Cardoso.
Aquela região era habitada pela etnia Carijó desde a Baixada Santista, a parte Sul que era dominada pelos Tupiniquins – uma área talvez em disputa naquele momento porque sempre havia conflito entre os Tupiniquins e os Carijós. Eu vejo que provavelmente os Tupiniquins tomaram essa área dos Carijós porque eles já estavam ali antes, justamente onde se encontram os grupos Tupi Guarani. No momento que os portugueses aportam no Brasil, os Tupi estão em expansão pelo litoral e os Carijós já haviam subido parte do litoral. No Vale do Ribeira, o predomínio total era dos Carijós, a quem o Bacharel de Cananéia se alia, é abrigado por eles, começa aprender falar a língua, e se casa com uma indígena.
Sobre os Guarani
Os Guarani tem divisões internas, são uma etnia só, mas, tem, como se fosse, uma subdivisão étnica, o grupo Mbya, o grupo chamado pelo branco Ñandeva: “nós”, “todos nós” ou “nossa gente” – o branco colocou esses nomes pra entender tudo isso, às vezes, eles mesmos (os indígenas), que davam, e não se davam pra eles mesmos, davam para o outro grupo. Quase todos os nomes de etnias no Brasil foram dados por outros povos. Os Mbya, os Kayoa (hoje, no Mato Grosso do Sul), que também já ocuparam o interior de São Paulo; são dois grupos que em algum momento se dividiram entre si, mas, já fizeram parte de um só grupo.
Os Carijós são os mesmos que hoje a gente chama de Ñandeva – esse grupo se dividiu ainda antes do outro grupo – tinham características diferentes em relação aos Mbya e aos Kayoa porque eles tinham essa prática expansionista na concepção da cultura, porque eles colonizavam novas terras e outros povos. Por isso, quando eles tem contato com os portugueses, logo fazem uma aliança através do casamento. O Bacharel de Cananéia, por exemplo, ele se casa porque os Carijós veem que ele é de um outro povo, adotam ele e, a partir daquele momento ele vira um cunhado como se fosse um parente. Por exemplo, os Mbya e os Kayoa não tem essa prática. Os Carijós tinham. Isso tem a ver com a história das comunidades caiçaras, das comunidades caipira, os caboclos, eles adotaram as práticas indígenas inclusive para a agricultura, como o mutirão.
Neste início da colonização começou haver essa mistura, não foi só o português que se misturou com o índio, o índio também se misturou com o português como uma estratégia de sobrevivência e de expansão, no caso dos Carijó e dos Tupis. Só que isso se voltou contra eles, porque como os portugueses não paravam de chegar, esses grupos que eram misturados começaram a se aliar mais com o lado português do que com o lado indígena, e eles se tornaram os grandes caçadores de indígenas, os bandeirantes. Alguns bandeirantes eram portugueses mas, muitos eram filhos de portugueses com indígenas, o mameluco — por conta de uma relação que os portugueses faziam com a Guerra de Reconquista da Península Ibérica, porque eles guerreavam contra pessoas de origem árabe, morenos, que eram considerados muito agressivos, eram guerreiros – como se os europeus não fossem.
Nessa história, o Bacharel de Cananéia se alia com os espanhóis porque ele tinha pretensões territoriais. Ele entra numa briga com um português chamado Pedro Correia, para quem os portugueses doaram as terras ao sul de São Vicente — onde, hoje, está as ruínas do Porto das Naus – por esse motivo houve, lá, a Guerra de Iguape.
O que aconteceu depois da Guerra de Iguape é que os Carijós se tornaram o grupo majoritário a sofrer com esse processo de escravização, quando saíam as expedições de São Vicente e São Paulo, elas iam para as áreas onde havia essa população Carijó. E as primeiras expedições saíam de São Vicente pelo litoral porque era muito mais fácil de se locomover, rumavam principalmente para onde hoje é o Vale do Ribeira e um pouco do litoral do Paraná – passando sobre as terras que era dos “espanhóis”. Essa área do litoral sofreu muito com esses ataques portugueses, mesmo assim, até o século XVII tem relatos dos padres que vinham descendo para o Sul pelo litoral que encontravam com várias comunidades Carijós, com o objetivo de catequizar.
Século XVII
Mas ainda no século XVII haviam muitas comunidades no litoral do Vale do Ribeira, no interior também, porque o território antigo deles ia do litoral de São Paulo até a Argentina e o Paraguai, e, para o Sul, chegava até onde hoje é o Rio da Prata – ocupação em parte da Argentina e quase todo o Uruguai. No caso do Uruguai, dividiam o território com os Charrua. No Paraná até o Rio Grande do Sul eles dividiam com os Kaigang, geralmente estavam nas bacias dos rios, e os Kaigang, nas áreas mais altas, montanhosas geralmente nas matas de araucária. Enquanto os Carijós estavam nas matas de Floresta Atlântica.
No início do século XVII, essas expedições dos bandeirantes começam a ter como alvo o interior, houve praticamente uma dizimação dessa população que estava no litoral e passou a ser quase toda absorvida para o trabalho nas fazendas. Pouco se fala das fazendas de exportação dessa antiga capitania de São Vicente, na verdade, o primeiro plantio de cana-de-açúcar foi na capitania de São Vicente, antes do Nordeste, feito com mão de obra indígena enquanto no nordeste, a partir do século XVII a mão de obra é negra. A mão de obra continua sendo o escravo indígena absorvido por esse sistema, se misturam com os brancos, dando origem à população caiçara. No caso, as populações tradicionais caiçaras são grupos que absorveram muito da cultura indígena e ainda assim viviam de forma mais autônoma como comunidades. Mas, pouco se fala dessa população que se tornou talvez, o grosso da população original desse início da história do Brasil, ainda antes dos imigrantes europeus.
A história do padre Rui Luiz de Montoya, no século XVII, ele conta toda a história da expansão dos bandeirantes, dos jesuítas fugindo juntos com os indígenas, esse padre vai para a Europa, consegue autorização, com o apoio do Papa e do rei da Espanha, para que eles pudessem armar os indígenas para poder deter os bandeirantes. Porque os indígenas era proibidos de pegar em armas, como uma forma de mantê-los em cativeiro, porque na verdade, os aldeamentos eram uma forma de cativeiro também. Eles sabiam que fora dos aldeamentos eles corriam risco de serem pegos pelos próprios bandeirantes. Conseguiram autorização para armar os indígenas, ainda, um pouco antes disso, os bandeirantes sofrem a primeira derrota para os Guarani, munidos de arco e flecha, mas, com a ajuda de alguns padres espanhóis que pegavam em armas e sabiam atirar de canhões, e sabiam fabricar pólvora. Os bandeirantes começam a sofrer algumas derrotas na divisa com a Argentina.
Século XVIII
No século XVIII, a escravidão negra alcança também a província de São Vicente que, até então, era concentrada no Rio de Janeiro, e, no Nordeste. O comércio de escravos negros arrancados da África e muitas vezes o comércio interno — atualmente está sendo estudado. Esse tráfico se dava pela captura dos negros de diferentes etnias na África, para algumas regiões portuárias e esse translado para as Américas. E aí, muita gente morria no navio e os que chegavam vivos eram cuidados para serem vendidos nas capitais, como mão de obra, do Rio de Janeiro até a Paraíba. Depois, quando começa a escassez da mão de obra indígena, por conta de população, porque, além da captura direta que os bandeirantes exerceram durante um longo período de 200 anos, também espalharam as doenças para os indígenas. E, além disso, causando muita fome por dificuldade dos grupos se manterem no território — uma população de homens, mulheres, velhos, crianças, que vivem do cultivo e de repente precisam fugir, e, muitas vezes se encontravam com outros grupos inimigos. Foi um estrago muito grande o que os bandeirantes promoveram — no século XIX, o estado de São Paulo quiz resgatar os bandeirantes como heróis.
No século XVII havia um número considerável de aldeias, elas desaparecem e quando chega no século XVIII, o que ficou ali, a maior parte são populações já misturadas. No século XVIII, a gente pode dizer que a população, já caiçara – os indígenas já não estavam mais no litoral. No interior do Vale do Ribeira, no século XVII a gente não tem tantas informações.
Nessa época, o Vale do Ribeira de alguma forma participa dos ciclos econômicos, porque, ele tem essa complexidade com o litoral, um interior muito grande e passa por um período de expansão agrícola. Muita gente tem a idéia de que o Vale é uma grande área de Mata Atlântica intocável, mas nunca foi, depois da chegada dos portugueses.
O Vale do Ribeira foi intensamente ocupado também pela colonização, participou praticamente de todos os ciclos econômicos dos País, teve período de mineração, de cafeicultura. E no século XVIII, a mão de obra negra começa a chegar – como ela demorou pra chegar em São Paulo, ela chega pelo Vale do Paraíba, logo depois ela vai para o Oeste Paulista — e se expande também para o Vale do Ribeira; daí a origem da população quilombola no Vale do Ribeira. Uma grande parte dos Quilombos são populações remanescentes da população que foi escravizada.
No século XVIII, ainda provavelmente, havia grupos indígenas ali em situação de algum isolamento, essa população ou é integrada de alguma maneira ou ela fica inviabilizada.
Isso só vai mudar no século XIX quando aqueles grupos que foram vitimados pela ação dos bandeirantes, por aproximadamente 200 anos, foram tomando tudo, principalmente pela unificação, na época da Coroa entre Espanha e Portugal. Foi o período onde eles mais atacaram cidades espanholas e missões jesuítas na região que hoje é o Paraná, na época os Carijós já eram os Guaranis e os Kaigang chamados de Gualatios pelos espanhóis.
O bandeirantismo no século XVIII cai em desgraça porque já tinham capturado o máximo de indígenas que podiam, eles mesmos descobriram onde tinha ouro e, eles acabaram perdendo na história porque tem a Guerra dos Emboabas, onde os colonizadores, principalmente das capitais do Rio de Janeiro, de Salvador, acabam dominando a região das Minas — descobertas pelos bandeirantes de Taubaté (uma das cidades de onde saia muitas expedições), depois disso os bandeirantes paulistas (de São Paulo). A Coroa Portuguesa passa a ter um interesse direto na área, manda os reinóis (na época, eram os portugueses de Portugal) como administradores e quando coloca algum brasileiro, coloca esse pessoal criado no Rio de Janeiro, em Salvador — os paulistas perdem as regiões das Minas e aí, é o declínio do bandeirantismo. Eles começam procurar algumas Minas mais distantes, encontram em Goiás, em Mato Grosso, e nunca mais voltam ter a mesma força.
No século XVIII, especificamente, no Vale do Ribeira, a gente tem um vazio de informações em relação aos povos indígenas porque eles já haviam passado por todo esse processo inclusive de expansão do bandeirantismo. O que a gente pode considerar de permanência da população indígena é a atividade das tropas, eles tinham perdido território mesmo assim a população indígena é predominante durante o ciclo do tropeirismo que se inicia principalmente com uma predominância de mão de obra indígena. E essa rede enorme que eram as estradas das tropas alcançava desde as cidades de Goiás até o Mato Grosso até o Uruguai. A principal mão de obra eram os indígenas, eles não tinham mais território mas, ainda estavam aí, eles nunca desapareceram, e, por isso, estão até hoje.
Século XIX
No século XIX, a gente tem informação onde é Itariri, SP, houve um processo daqueles povos que sofreram com os ataques dos bandeirantes, o bandeirantismo desaparece e esses grupos começam a retornar.
No início do século XIX, aqueles grupos que foram expulsos da região pelos bandeirantes, tanto de indígenas aldeados como aqueles que permaneciam nas matas resistindo — alguns grupos que se localizaram principalmente em regiões montanhosas da divisa do Mato Grosso do Sul, com o Paraguai ou também na região de Missiones, na Argentina, e na região próximo de Foz do Iguaçú (Bacia do Rio Paraná) — uma grande parte da população indígena que havia resistido aos bandeirantes, começa voltar para o litoral.
É um processo que tem a ver com a religião, inclusive, eles já tinham alcançado o litoral dentro de uma profecia, eles estão até hoje em busca da “terra sem mal” — esse é o motor de migração, a cultura também religiosa dos Guarani é tão antiga que antes da divisão entre os Tupi e os Guarani, ela já existia, porque os Tupi também migraram para o litoral em busca da “terra sem mal”. Os Tupi que subiram, que desceram a amazônica e alcançaram a região da Foz do Amazonas, foram descendo pelo litoral passando pelo Maranhão, Ceará, Paraíba e chegaram até São Paulo, também em busca da “terra sem mal”. E, os Guarani fizeram a mesma coisa pela Bacia do Rio Paraná – isso durou muitos anos. Quando eles perdem o território para os portugueses, nem assim, eles esqueceram da história deles. Justamente quando termina essa perseguição dos bandeirantes — sofreram outras perseguições dos chamados bugreiros (chamavam os índios de bugres e caçavam os índios) — no século XIX, começa haver o retorno para o mar. Novamente essa migração do Guarani pelo Paraná chegando em São Paulo, passam pelo Vale do Ribeira até chegar na Baixada Santista e pra chegar até o litoral também. Nesse processo que eles passam pelo Vale do Ribeira alguns grupos permanecem, porque é uma prática deles, como se fossem formando ilhas de ocupação. Por exemplo, um grupo vai até tal lugar, aí ele para ali. Outro grupo continua. Aí, outro grupo vem lá de onde eles vieram e para ali. Aquele grupo que estava parado ali, vai e continua. É assim até hoje.
No século XIX, são criados alguns aldeamentos, o aldeamento de Barão de Antonina e Itaporanga, justamente nessas cidades – próximo do Vale do Ribeira, considerado sudoeste paulista – o aldeamento do Rio Verde e o aldeamento de Itariri também; no século XIX, a gente tem registros desses aldeamentos.
Tinha essa questão religiosa Guarani, no século XIX, alguns líderes religiosos faziam a migração. Os aldeamentos eram estabelecidos pela Igreja Católica para tentar catequizá-los, só que a religião deles sempre foi tão forte que até hoje eles mantém. Eles dialogavam, como até hoje dialogam com o cristianismo, e conseguem manter majoritariamente a religião deles. Por isso, que eles estão sobrevivendo até hoje, senão tinha acabado tudo.
Eles são aldeados pelos religiosos. Mas também, teve alguns períodos da história do Brasil onde foi instituído um tipo de administração laica, no período do Marquês de Pombal, ele estabeleceu os diretórios dos indígenas, extinguindo os aldeamentos. Só que esses diretórios foram sendo meio abandonados, às vezes, até as populações locais onde tinha a presença de indígenas, começaram a chamar a Igreja novamente para fazer algum trabalho missionário. Os fazendeiros e até os municípios mesmo, convidavam os padres a fazer algum trabalho com os indígenas porque não sabiam como lidar — é bem comum haver aldeamentos religiosos.
No final do século XIX, no período do Império havia uma relação muito estreita entre essas missões religiosas e o Estado. Esse período tem uma visão bastante favorável aos indígenas em relação à República, por exemplo. Muitos aldeamentos são mantidos com recursos estatais e uma certa fiscalização por agentes estatais que visitavam, contavam, faziam registros. Com a instalação da República, eles perdem as terras e não tem a quem recorrer, passam por um período nebuloso.
Só melhora novamente, já no início do século XX, quando é criado o Serviço de Proteção ao Indígena, SPI – o pai da Funai – instituído em 1910, idealizado pelo Marechal Cândido Rondon, um positivista. Ele foi o responsável pela instalação do serviço de telégrafo, e, nesse processo, ele teve contato com muitos povos indígenas e havia estrategicamente um objetivo com essa instalação das linhas de telégrafos de ocupação das fronteiras do País. Esse Marechal observou que nas fronteiras havia o predomínio de população indígena e ele entendia que seria muito menos custoso para o governo “transformar” os indígenas em brasileiros, porque a região tinha o assédio de outros países – a fronteira do Brasil só foi definida depois que houve os conflitos, lá no Acre com a Bolívia. Se o Estado brasileiro investisse na preparação de uma mão de obra indígena nas fronteiras, e desse o suporte com a instituição de escolas para que essas pessoas passassem a se identificar com o Brasil, essas pessoas iriam efetivar essa ocupação do território nacional nas fronteiras. E aí, como a maioria das pessoas nessas regiões eram indígenas, o Marechal Cândido Rondon desenvolveu uma proposta para apresentar para o governo federal, de criação do Serviço de Proteção ao Índio. Nessa época, o presidente era o Nilo Peçanha, na história do Brasil, o único presidente negro, também positivista – o positivismo no Brasil era muito forte naquela época, inclusive era uma Igreja e até hoje, tem uma relação com a Maçonaria. Havia um diálogo muito forte do Marechal Rondon com o presidente Nilo Peçanha, assim como com outros republicanos.
Por mais que depois da Proclamação da República ficou um vazio com essa questão indígena isso levou alguns anos, não chegou a 50 anos. Em 1910, finalmente, a República cria uma política ou um órgão que vai tratar de uma política em relação aos indígenas – é um marco.
A questão política do retorno dos indígenas ao Vale do Ribeira
No Vale do Ribeira ainda havia remanescente da política anterior, os aldeamentos, no caso, o único oficial, era o de Itariri — a população indígena vinculada a esse aldeamento de Itariri era tudo o que é hoje o maciço da Juréia-Itatins, ou seja, alcançava desde o Vale do Ribeira até a Baixada Santista. Quando o SPI começa trabalhar na região, ele tenta instituir um Posto Indígena, onde hoje é a Aldeia do Bananal, em Peruíbe, SP, com o intuito de reunir ali, todos os indígenas que estavam espalhados na região — do Vale do Ribeira e da Baixada Santista – e o SPI não consegue fazer isso. Os indígenas continuam ocupando uma área muito maior, espalhados. Finalmente, ele acaba cedendo de alguma forma, cria um Posto Indígena, em Itariri, e depois de algum tempo, tem o reconhecimento do aldeamento aonde é o Rio Branco. E vai demorar muitos anos pra gente ter um Processo de demarcação das terras no Brasil, já na época da Funai (fundada em 1967).
Enquanto esses indígenas iam voltando e tentando reocupar o que foi o território deles, eles sofriam ataques, mesmo no Vale do Ribeira, em pleno século XIX. 400 anos depois, as pessoas estavam caçando indígenas pra utilizar no trabalho forçado, para escravizar”, concluiu Nacif.