A 9ª edição do Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI) foi realizada na Unicamp, em Campinas (SP), sendo a primeira vez que o ENEI acontece em uma universidade estadual. O tema do encontro foi “ancestralidade e contemporaneidade: tecendo histórias a partir das epistemologias, cosmologias, ontologias e vivências dos povos indígenas”. Durante todo o evento esse tema foi o delineador das palestras, bate-papos, workshops e manifestações culturais que aconteceram durante uma semana de evento.
Um dos destaques do IX ENEI, foi o protagonismo indígena na oficina de antropologia tratando da questão, “Papera Kumã – o que é antropologia para o indígena?”. Dez antropólogos indígenas relataram sobre a suas pesquisas na Universidade.
Entrevistamos Suni Perpétua, ou Perpétua Pereira Cerqueira, nome não indígena, da etnia Kukama, do clã Arirambo, que significa o pássaro que mora na terra.
Perpétua nos contou sobre sua pesquisa acadêmica para o mestrado em antropologia social pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas), abordando os cânticos tradicionais indígenas em cada tarefa realizada diariamente pelas mulheres indígenas e a importância cultural que essas músicas representam para os povos originários.
Jornal Pires Rural: Quais são os desafios de um indígena para chegar até a universidade?
Suni Perpétua: Eu sou do Alto Solimões, de São Paulo de Olivença (AM), próximo a divisa da Colômbia e do Equador. Estou estudando na UFAM e morando em Manaus. Por estar cursando eu vou em casa, na comunidade, na aldeia e depois volto. Ultimamente estou em Manaus estudando, até a minha comunidade leva cinco dias de barco. Tenho que lhe dizer, até há um tempo atrás os Kukamas praticamente não existiam, os não indígenas diziam; não existe esse povo. Até que foi elaborado uma pesquisa e revelou que existe sim, provando que existe falantes da minha língua. Nós estávamos escondidos, morávamos na beira de lagos. O taita é o cacique, são os pajés, eu sou neta de taita por parte de pai e mãe. Pra você ter ideia, com 21 anos nem ler eu sabia. Hoje, estou fazendo um mestrado.
Jornal Pires Rural: Por que você escolheu o tema “a música na visão de uma mulher Kukama”, na sua pesquisa de mestrado?
Suni Perpétua: Quando entrei pra UFAM, eu resolvi fazer a pesquisa da música do meu povo Kukama. Por causa da pandemia eu tive que mudar a forma de pesquisar. Assim, eu fiz um resgate da minha vivência, trouxe o tema da pesquisa “a música na visão de uma mulher Kukama”, onde eu resgato tudo o que vivi. Pra nós Kukama a música é muito importante, não é só uma música para um ritual, para uma dança, ela vai além disso. A minha pesquisa foi resgatar a minha ancestralidade, eu trago as minhas lembranças desde criança para dentro da minha pesquisa. Na verdade eu estou escrevendo a minha história, o não indígena diz que é pesquisa. Eu descrevo a minha relação com meu avô, com a minha avó. Na minha pesquisa isso é retratado, o cotidiano, por exemplo, quando as mulheres, entre elas a minha mãe, a minha tia e a minha avó, elas vão fazer farinha — só que hoje o meu povo, a maioria não pratica mais esses ritos que temos, porque muitos se mudaram para a cidade.
Jornal Pires Rural: Conte um pouco mais sobre esse cotidiano, essa sua história de vida, abordada no seu trabalho acadêmico?
Suni Perpétua: Quando as minhas tias iam tirar caripé, que é uma casca de árvore que serve pra fazer pote, então, elas cantavam para encontrar a melhor árvore para retirar as melhores cascas, quando não encontravam a árvore já caída na mata. Elas cantavam pra natureza mostrar à elas as melhores árvores, depois disso, elas colhiam. Se não encontravam a árvore caída, elas tiravam as cascas da árvore em pé mesmo e, traziam. Depois elas iam tirar o barro nos igarapés, elas também cantavam pra natureza liberar o melhor barro. No igarapé tem a mãe que libera o melhor barro, sem areia. Esses ritos continuavam na mistura do barro com o caripé para fazer o pote e, cantavam. Com essa mistura elas faziam o pote. Depois do pote feito, levavam pra queimar, elas cantavam pra ter aquela sintonia entre o vento e o fogo. Quando juntavam e amarravam as peças pra queimar, elas cantavam, inclusive, na minha pesquisa tem uma foto da minha mãe, fazendo a simbolização como se eu fosse um pote queimando, eles dançando ao meu lado e cantando.
Jornal Pires Rural: Como são essas cantigas?
Suni Perpétua: Era na forma de ancestralidade mesmo que é aquela cantiga que minha mãe usava muito, era um som, uma fonética, uma melodia assim; “ahãhã”. Não são palavras, não tem uma letra, é um som que pra eles tem um significado. Quando eles vão fazer a farinha da tapioca eles cantam. Vamos dizer que você chegou ali na hora, eles estão cantando e vão chamar você pra cantar junto, por que? Pra ter uma farinha mais leve, mais gostosa.
Quando a minha avó ou avô iam fazer dormir as crianças ou mesmo brincar, ou ainda olhar os meninos, eles cantavam. Quando chovia minha avó usava uma cuia que colocava debaixo da biqueira da casa de telhado de palha, aquele sonzinho da água da chuva na cuia, ela tirava uma melodia dali, embalava e fazia as crianças dormirem. É esse tipo de vivência na minha pesquisa que estou trazendo para dentro da universidade como antropólogo e pesquisadora.
Jornal Pires Rural: Você teve que mudar seu planejamento na pesquisa?
Suni Perpétua: A mudança que me referi é que eu tinha que ir pro campo mas, com a pandemia eu não pude sair. Então, eu fiz esse resgate de memória, em vez de ir pro campo. Não tinha como no meio de uma pandemia, não saía ninguém, o que fiz? Eu trouxe essa minha vivência, esse resgate da minha memória e comecei a escrever. Eu estava em Manaus e não pude voltar pra comunidade. Já tive a qualificação, só falta mesmo a apresentação da defesa da tese.
Jornal Pires Rural: Você sendo uma antropóloga o que pode nos dizer como é o comportamento das pessoas?
Suni Perpétua: Eu falo do meu povo, há muito machismo. Tem sempre aquilo da mulher fazer a comida mas, nós mulheres sempre estivemos ao lado dos homens, nunca atrás, mas ao lado, lutando com seus homens. Desde quando me entendi por gente tem o machismo. O meu pai, se disser pra minha mãe; ‘fique aqui’. Ela vai ficar e, só vai sair quando ele autorizar, por que? Porque eles foram criados assim, foram educados desse jeito, para se comportar desse jeito. Aquela coisa de obediência, a mulher tinha que obedecer seu esposo quando casassem, então, até hoje, minha mãe é assim. Hoje, nós somos educados diferentes. Se eu contar pra minha mãe o que aconteceu, ela logo divide com meu pai. Eu digo; ‘mamãe, nem tudo conta para o marido’. Ela diz; ‘mas eu conto’. Então, pra ela quando eu faço uma viagem, dou palestras, ela me diz; ‘minha filha, você já vai de novo? Você é mulher, poxa imagine se tu fosse homem, como é que tu não era?’ Eu digo; ‘mamãe, eu sou capaz igual ao homem. Tenho a mesma capacidade que os meus irmãos’. Pra ela só o homem é capaz e, a mulher não é capaz de chegar onde a gente pode chegar”.
Jornal Pires Rural: E a vida na aldeia?
Suni Perpétua: A vida na aldeia é um pouco o que contam nos livros, as mulheres fazem as comidas e os homens pescam, mas não é só isso que acontece no dia a dia. Na rotina diária vamos pra roça cantando, porque, antes de entrar na mata eles pedem licença, porque estão entrando em casa de outro, tem habitantes na mata, então, eles pedem licença e vão cantando. Chegam na roça ele fazem uma jurí e cantam, porque eles cantam plantando? Pra afastar os maus que estão ali na terra. Pra dar melhores frutos. Igual conversar com as plantas, isso é muito nosso. Quando estamos plantando, estamos falando assim com elas; ‘cria aí bonita, vamos estar te cuidando, não vai se sentir só, porque vamos vir praticamente todos os dias aqui com vocês’. Isso é nosso, as pessoas pensam que somos doidos falando ali. É nosso jeito de ser. Só que esse era o dia a dia da minha família, hoje, muitos Kukama já vieram para a cidade ou a cidade chegou até as aldeias. Então, muitos estão deixando seus costumes. Por isso, a razão da minha pesquisa, para registrar qual é o significado da música para nós Kukama.