Jornal Pires Rural – Edição 226 | SÃO PAULO, Março de 2019 | Ano XIII
André Maleronka, editor-chefe da VICE Brasil e Cleusa Turra, jornalista da Folha de S. Paulo, que atualmente, dirige o Estúdio Folha, ateliê de produção de conteúdo patrocinado para marcas e mercado publicitário, foram dois convidados para a mesa sobre o tema conteúdo de marca (branded content), publieditorial e post patrocinado, expressões que passaram a frequentar o vocabulário do jornalismo na última década. Mas podemos questionar se isso é jornalismo? Quem é o novo patrão do jornalista? A relação entre Marketing, jornalismo e conteúdo patrocinado foi tema abordado no seminário “Jornalismo: as novas configurações do Quarto poder”, diante de um perplexo segmento em crise, o evento reuniu mais de 50 profissionais experientes na área de comunicação. Promovido pela Revista Cult em parceria com o Sesc, foi realizado na unidade do Sesc da Vila Mariana, em São Paulo.
Continuamos a perguntar, como se configuram as relações entre os veículos de imprensa e os anunciantes que procuram visibilidade através de conteúdo, e não do anúncio publicitário tradicional? André, expôs sua atual experiência, no comando da redação da VICE, desde 2010. A VICE é uma revista, que surgiu como fanzine no Canadá, depois migrou para os Estados Unidos e hoje está em mais de 30 países. “Sempre foi uma revista impressa, gratuita, depois criaram o site, surgiu a oportunidade de fazerem documentários e hoje em dia produzimos conteúdo para canais como HBO, National Geographic e nos Estados Unidos e na Europa temos um canal de TV próprio da VICE”, disse. “O modelo de negócio da VICE é fazer branded content. Basicamente o conteúdo feito para as marcas, se distancia do jornalismo, é mais uma questão ligada ao conteúdo, ele não é necessariamente jornalismo mas, ele pode ser, dependendo do caso. Trabalhamos com as necessidades das marcas e os nossos limites, atuamos como uma produtora (de vídeos) e uma agência (de publicidade) ao levantar as ideias. As marcas também patrocinam nossos programas assim como, em parceria, desenvolvemos conteúdo. Elaboramos desde propriedade intelectual para marca ou para a VICE e obtemos o patrocínio de uma marca. Isso significa, por exemplo, desenvolver uma série em vídeo sobre astronomia patrocinado por uma marca, depois (em outra temporada) faço com outra, ou seja, essa propriedade intelectual é minha. E, se desenvolvemos uma propriedade intelectual pra alguém, isso muda os valores. Temos uma premissa seguida globalmente que é nenhuma interferência no conteúdo, por parte das marcas, isso nos dá independência editorial”.
A jornalista Cleusa Turra também frisou sua experiência no relato, “a Folha de S. Paulo estava acompanhando esse movimento das marcas que decidiram caminhar velozmente para um outro tipo de publicidade. As marcas decidiram, a partir do comportamento dos jovens que começaram a ter ojeriza com a interrupção das atividades para anúncios, seja na hora que está escutando uma música, seja na hora que está lendo um jornal impresso ou no digital, uma revista ou um filme. Rapidamente as marcas perceberam que essa ojeriza pela interrupção, iria virar uma regra. Começaram então, a migrar velozmente para a formação de concepção de marca por intermédio do conteúdo e voltaram a dividir no terreno da publicidade com os anúncios, era o que as agências de publicidade e propaganda faziam, aqui no Brasil inclusive uma geração desenvolveu muito esse lado”, ela apontou. Procurando exemplos desse novo comportamento das marcas e dos jovens, a Folha de S. Paulo que é um jornal líder em quality paper no Brasil, foi ver o trabalho que é desenvolvido pelo New York Times nos Estados Unidos, pelo The Guardian na Inglaterra e pelo Le Monde na França, “o que se percebeu diante do conteúdo que as marcas estavam propondo, no caso da Folha, não tem nada a ver com o jornalismo proposto. Então, a primeira decisão da Folha foi estabelecer que essa área não diz respeito à redação do jornal. Porque o jornalismo que a Folha pretende realizar não é jornalismo para conteúdo às marcas. Decidiu-se criar uma nova área ligada lado a lado com a publicidade do jornal. Foi nesse momento que fui convidada para dirigir essa área, me despedi da redação, onde trabalhei quase 30 anos e, hoje temos uma área, junto com a publicidade” afirmou Cleusa.
Marketing e independência jornalística
André destaca que o trabalho da VICE através do branded content, “é mais um produto que vai ser entregue ao público consumidor, então, o conteúdo é uma forma de comunicação da empresa, um Marketing. Cito o exemplo de quando a Intel procurou a VICE, lá em Nova Iorque, pois queria mudar seu perfil e mostrar a tecnologia da empresa de uma forma mais criativa. Foi vendido um projeto, que incluía o Brasil, chamado “The creators project”, que era uma plataforma de divulgação e mecenato para artistas digitais que aconteceu durante 3 anos. Isso conseguiu alavancar a VICE em termos financeiros e tínhamos uma transparência bem grande nesse projeto, estipulado em contrato. A VICE não teria nenhuma censura em abordar qualquer tema no site, de repente se a Intel tivesse um escândalo de trabalho escravo, poderíamos falar disso na VICE, não íamos falar no “The creators project” mas, tínhamos liberdade pra tratar disso na revista, não seria um problema e nem uma quebra contratual, mantemos nossa independência jornalística. O “The creators project” foi bem joia de fazer pois, trabalhamos com muitos artistas brasileiros, ajudá-los a fazerem muitas coisas legais”, apontou.
DNA de jornalismo
Cleusa Turra sugere que as marcas estão buscando credibilidade, conteúdo e audiência qualificada, “já tive a oportunidade de conversar com outros públicos, hoje eu colocaria em evidência audiência qualificada, porque a experiência que as marcas estão fazendo, no mundo da internet, parece que não está surtindo bons efeitos. Porque a questão de construção das marcas é necessário fazer de forma longeva. Em primeiro lugar não se pode perder o que a marca já construiu, por que reputação é uma coisa difícil de ser construída e fácil de ser destruída, então, as marcas que querem uma história longevas precisam respeitar o próprio passado e traçar estratégias de fazer um caminho com credibilidade. Porque isso? Por que em algum momento, nos últimos anos, começaram a aparecer algumas soluções “mais fáceis”, algumas soluções onde os ‘likes’ são mais rápidos e mais eficazes, ao primeiro momento era a “solução” e, agora depois de algumas derrapadas envolvendo mais de um milhão de pessoas, são derrapadas muito difíceis de consertar. Rapidamente é preciso pedir desculpas e começar de novo, só que vai perdendo credibilidade. Portanto, repetindo, audiência qualificada para marcas sérias é muito importante e, quem tem conhecimento de audiência, são as empresas que trabalharam com conteúdo. No caso, a Folha tem a expertise de que a audiência dela está buscando, sabemos o que os nossos leitores questionam. Essa expertise é um atributo da Folha, além da empresa ter em seu DNA o jornalismo, que é conteúdo. Então, se as marcas buscam credibilidade, buscam audiência e estão migrando velozmente para se comunicar pelo conteúdo, os quality papers voltaram a ter uma importância estratégica para as marcas”, argumentou.
Em sua opinião André é mais suave “tem mais duas coisas importantes a falar, uma delas é que eu não vejo uma discrepância tão grande no sistema de anúncios ao sistema de produzir conteúdos. Para o jornalista, enquanto profissão, acho até mais interessante, quando contrato um ‘freela’ (freelancer, é um profissional autónomo que guia seus trabalhos de forma independente) pra fazer uma matéria para a VICE, tenho um borderô mais limitado em comparação há algo patrocinado por uma marca. Então, eu consigo pagar essa pessoa melhor, dentro da situação econômica que vivemos é um modelo um tanto quanto interessante. Eu não acho tão diferente do que bancou o jornalismo até hoje, sempre foram os anunciantes. Dentro dessa cadeia, quem está produzindo aquilo que leitor ou internauta costuma ver é alguém da publicidade, alguém de agência produzindo um spot, um anúncio, uma propaganda. No caso que estamos falando de branded content, vai ser um jornalista porque é conteúdo”, avaliou. Outro ponto evidenciado por André diz respeito as redações de jornais, “não posso afirmar que tenha ingerência de anunciantes dentro do conteúdo a ser publicado mas, eles tem uma vontade. O cara vai forçar uma barra dizendo: ‘pô, vocês estão falando de especulação imobiliária, enquanto anuncio com vocês 12 páginas de propaganda de imóveis?’ Acontece, a gente sabe. Tem o publieditorial que soa uma propaganda meia disfarçada, eu acho o modelo de branded content um tanto quanto mais limpo, é mais na cara e, também temos que achar uma solução criativa para que ele seja bacana. Mas faz parte do oficio, vamos fazer matéria que nos orgulhamos e outras não tão legais, jornalista não é artista, é trabalhador”, emendou.
O midialivrismo de 2013
“Nossa profissão mudou muito, muito, muito depois da internet, tudo vai em onda, e às vezes perdemos nossa independência jornalística por causa da necessidade do clic. As coisas mudaram notadamente na nossa profissão desde 2013, com a cobertura de protestos pela internet. Foi o ‘midialivrismo’ (a produção de informação, de mobilização e de formação política pra além das grandes corporações e dos grandes veículos de comunicação). Esse modelo deu errado em termos jornalísticos, deu em gente trabalhando nas redes de graça pra candidato político. Acho que temos um problema muito sério no jornalismo atualmente, criou-se um modelo de trabalho onde, além de desqualificar o trabalho do jornalista, porque qualquer um pode fazer, basta ter um celular na mão, coisa que não é verdade. Outra coisa, que é um modelo de trabalho o qual só o topo da pirâmide ganha. Quem tá na rua cobrindo protesto e tomando porrada, ou perdendo sua saúde mental na época de eleições, apenas o seu patrão tá ganhado dinheiro e, às vezes não aparece seu nome nos créditos. Podem até demonizar fazer conteúdo pra marca porém, tem agência de publicidade contratando mais jornalistas do que veículo jornalístico, e pagando mais pra fazer conteúdo pra marca. Então, eu acho que é uma boa alternativa e um bom modelo de negócio pra quem é jornalista. É isso”, concluiu André.
Finalizando, Cleusa diz, “concordo com meu colega, estando claro para o leitor ‘esse conteúdo foi pago pela marca X’, estamos no jogo. O que causa estranheza e não é a melhor forma, é achar que o leitor, não sendo avisado, vai achar tudo bem, ao ler uma matéria que ele não sabe que foi patrocinado, sem o principio da transparência. Com a sociedade conectada em rede, não cola mais. O leitor informado não tem problema ao ler um conteúdo patrocinado. Não há caminho fácil para a comunicação, não há caminho fácil para a construção de credibilidade, não há conto de fadas ‘da noite pro dia’. Criar uma marca, se comunicar e ter sucesso estrondoso, só se for calcado em fundamentos de transparência, sua prática condiz com seu diálogo, e a busca por parceiros compromissados. Trabalhamos no Estúdio Folha com as marcas desde o início das campanhas, são projetos patrocinados, buscamos deixar isso muito claro, muitas vezes buscando reforçar algumas histórias e, orientando qual é a melhor distribuição do conteúdo. Podemos trabalhar como parceiros em diversas áreas com as marcas: vídeos, palestras reportagens, eventos, storytelling, ajudando a construir uma história longeva”, pontuou Cleusa.