Dificilmente as pessoas, na rotina do dia a dia, lembram-se de zelar pelas boas condições da voz dando importância aos cuidados necessários para preservá-la. Com a proposta de levar esse tema para discussão na sociedade, a partir de 2003 foi estabelecido o “Dia Mundial da Voz”, celebrado todo 16 de Abril. A comunicação oral é uma parte essencial do trabalho de muitos profissionais, tais como atores, feirantes, jornalistas e advogados. A precaução com a voz é uma questão de condicionamento físico pois, ela precisa estar forte para suportar as variações diárias.
Conversamos com a fonoaudióloga formada pela USP, Alessandra Krauss Zalaf, para nos esclarecer porque falamos, de que forma falamos e como é produzida a nossa voz. O encontro com Alessandra foi por vídeo chamada e, no começo da conversa ela confessou; “estou falando muito e escrevendo menos nos últimos tempos, preciso treinar a minha escrita porque é um exercício, assim como a fala também é um treino. Tudo é um treino”. Segundo ela, a escolha por estudar fonoaudiologia foi devido ao seu irmão mais novo, na infância, trocar as letras quando falava, “tipo o Cebolinha (personagem de história em quadrinhos). Ele melhorou, pensei, é legal, gosto de criança. Depois de formada, dentro da fono eu encontrei uma coisa que eu sempre queria fazer e não sabia, que era trabalhar com atores. Eu sempre gostei dessa parte vocal, do cantar, de imitar as pessoas, foi um mergulho, de um certo modo”, revelou.
Alessandra, além de atender como fonoaudióloga clínica é preparadora vocal desde 2000, atuou em diversas escolas de teatro de São Paulo, como a escola de atores Ewerton de Castro, oficina de atores Nilton Travesso, Faculdade Paulista de artes e diversos grupos de teatro: Grupo RIA, Teatro Oficina, Ser em Cena e Teatro do Incêndio. Atualmente dá aulas de expressão vocal na Escola de Atores Wolf Maya.
Para a celebração do dia da voz, Alessandra e Nádia Vilela, sócias no consultório de fonoaudiologia, iniciaram um projeto, ano passado, por conta da pandemia, com a proposta de abraçar as pessoas com a voz, com a arte e a poesia, chamado “Voz que Conecta” através da rede social Instagram apresentando vários vídeos, performances e lives, que podem ser acessadas no perfil @vozqueconecta. Agora, acompanhe a entrevista completa;
Jornal Pires Rural: Como fica a questão do som da voz no atual momento que as apresentações são por aplicativos de transmissão de vídeo conferência, fazendo uso de equipamentos e da tecnologia digital?
Alessandra Krauss Zalaf: Desde o começo da pandemia, fomos aprendendo, hoje, as pessoas dizem, ‘já estou há um ano nesse trabalho, já estou sabendo muito’. Quando falamos de fala em público, falamos as mesmas coisas que falamos nesse retângulo (celular, computador, tablet), porque a voz tem que estar de acordo com a mensagem que você diz, se tem algum desalinhamento na voz para um tom mais agudo ou nasalado (Alessandra imita o tipo de voz), pode trazer um ruído para a comunicação, porque o ouvinte pode prestar mais atenção a esse detalhe, devia o olhar e, obviamente, desvia atenção da comunicação. Então, nesse veículo que estamos utilizando agora (vídeo chamada), não é muito diferente.
Eu e várias colegas fonos, percebemos a demanda de muita gente procurando orientação para se expressar melhor e, talvez, pela facilidade do teleatendimento, isso de fato encurta distâncias, tenho atendido pessoas de fora do Estado de SP e de fora do Brasil. Eu atendo um convenio empresarial e tem vindo muita gente, por conta da pandemia, que querem se comunicar melhor e com esse advento das reuniões (à distância), com uma câmera na frente, normalmente, com um microfone ligado ou mesmo com um fone, está todo mundo se vendo mais e se ouvindo mais. As pessoas prestam mais atenção nessas questões mas, de verdade a gente já prestava atenção nisso. O que nos chamava atenção negativamente era quando desalinhava alguma coisa. Alguém que falava movimentando demais as mãos, isso chamava a atenção negativamente, isso poderia nos levar a uma confusão de comunicação, porque a linguagem não verbal fala mais do que a linguagem verbal, ainda, fala mais do que a nossa voz ou texto que estamos dizendo.
Jornal Pires Rural: Poderia nos explicar como acontece a voz?
Alê Zalaf: Ela é um conjunto. Não acontece em apenas um lugar. Ela não tem um sistema, assim como nosso sistema digestório. A voz acontece em três lugares, começa na caixa torácica com os pulmões, as costelas, o diafragma, a musculatura intercostal, que nos dá o combustível da voz. A segunda região é a parte anatômica do pescoço; a laringe, pregas vocais, epiglote, músculos internos e externos, chamamos de fonte sonora, é de onde vem o som. Ao colocar sua mão na laringe vai percebe que ela vibra. A terceira parte é o filtro sonoro, a cavidade da cabeça; nariz, boca, dente, bochecha, lábios, língua são as nossas estruturas anatômicas. Então, a anatomia da voz tem uma parte que é do sistema respiratório e uma parte do sistema digestório, porque usamos a boca para falar e para comer.
A voz é uma somatória da anatomia, da nossa configuração corporal, por exemplo, pessoas da mesma família tem vozes semelhantes. Dividimos a voz em 3 características; a voz da comunicação; o quanto me expresso na minha comunicação oral, a voz é esse veículo, é decodificado as mensagens em relação ao tom de voz que as pessoas estão falando. Em uma notícia triste o tom é bem lá pra baixo, as curvas são mais fechadas. Se estou conversando com você mais alegre, minha voz está mais aguda, mais aberta.
A outra característica é a fisiológica, os lugares do nosso corpo que essa voz acontece, que já citei. E tem o emocional da voz, que está ligada a nossa personalidade e com as nossas emoções. Às vezes tem alguém conhecido que não ‘bate o santo’, acha a pessoa inadequada, antipática. Alguma coisa desse conjunto de corpo e voz deu o sinal pra gente desse desalinho.
Jornal Pires Rural: Você pode descrever o mecanismo do choro e comentar se o choro é importante?
Alê Zalaf: O choro é a nossa primeira manifestação vocal no mundo. O famoso tapinha no bumbum do bebe serve para desobstruir vias respiratórias e doí, arde. Apesar das várias técnicas de parto de hoje em dia, é preciso desobstruir vias respiratórias e o choro é a manifestação de voz, porque é ar saindo pelas pregas vocais, eu acho bonito falar isso. Esse choro já tem um significado. Quando a criança é pequena os pais conseguem identificar no choro alguns sintomas, porque tem um choro diferente do outro.
Jornal Pires Rural: Qual é a relação entre voz e linguagem?
Alê Zalaf: A voz surge quando nascemos, mas não temos a fala ainda, vamos desenvolver a nossa linguagem, nos primeiros anos de vida se completa o quadro fonológico pois, a criança ainda pequenininha não sabe falar, fala errado, então, até os seis anos isso tem que estar completo. Não quer dizer que uma criança de seis anos falando errado precisa ir na fonoaudióloga, precisa saber o que não está encaixado. Hoje em dia as pessoas vem cada vez mais cedo procurar uma orientação fonológica porque percebe que a criança está falando errado. Uma criança de seis ou sete anos falar tipo Cebolinha, trocando letras, um quadro de grupo de consoantes, é mais preocupante mas, uma criança de dois ou três anos falar dessa forma é porque ainda está aprendendo.
A linguagem surge a partir de nossa escuta. Somos seres falantes, as pessoas que interagem conosco conversam, isso vai estimulando a nossa produção auditiva, a criança vai entrando em contato. Cada vez que chega alguém “papá chego, mamã chego”, as pessoas falam.
Uma criança que não é estimulada na fala, ela não desenvolve a fala da maneira correta, pensando em que tudo esteja preservado, ou seja, a criança é ouvinte, que todas as questões sejam ok. Porque uma criança que não ouve ela precisa ser mais estimulada para poder falar, assim, se for da vontade da família, se não ela naturalmente vai na linguagem de sinais. Falar também é ouvir.
Eu gosto muito de uma frase de Eugenio Barba que diz, a voz é a parte invisível do corpo que chega e toca o outro e, o corpo é a parte visível da voz. E, a nossa voz que chega no outro. Para qualquer conversa somos nós de verdade e não pensamos nisso, pensamos quando é um ator, porque ele tem que parecer de verdade, aquele sentimento que o personagem que ele esta vivendo e, a gente tem que acreditar, no filme, na novela, no seriado, na peça de teatro, temos que acreditar, então, precisa pensar nesse sentimento. Quando alguém pisa no teu pé você reage, você não pensa “nossa tenho que gritar”, você grita: Aí!!! É muito de nossa manifestação fisiológica e emocional.
Jornal Pires Rural: Devemos estar atentos a saúde vocal na infância? Por que?
Alê Zalaf: Durante a vida toda a saúde vocal é importante, não só na infância. As crianças, por exemplo, tem o hábito de gritar, então, juntas elas falam muito agudo, uma quer falar mais alto que a outra, tem uma competição sonora mas, as crianças não são roucas por conta disso, tem a ver com a anatomia, fisiologia. Se a criança é rouca aos quatro anos pode ter uma alteração orgânica ou orgânica funcional, ou seja, pode ter algum nódulo, o calo da prega vocal.
Mas a saúde vocal é para todas as idades, de criança ao idoso. A voz está ligada com a nossa comunicação e ficar sem falar é uma das coisas mais desesperadora para quem precisa ganhar dinheiro com a voz. Eu trabalho com profissionais que usam a voz para ganhar dinheiro, professor, cantor, ator, advogado, feirante, locutor, dublador, perder a voz é angustiante para essas pessoas, porque elas estão perdendo condições de trabalho.
O termo que uso para explicar para meus pacientes ou alunos a questão da saúde vocal, é “saldo vocal”, como saldo bancário; muito dinheiro, pouco dinheiro, juros, números. Na voz, cada um tem um saldo e não é medido pela quantidade, é de acordo com a anatomia, com a fisiologia, de acordo com os usos ou abusos da voz. Se a minha condição de saúde é normal, o saldo tem que estar normal, tem gente que mesmo em condições normais não tem um saldo bom. Temos que administrar a qualidade da voz e a qualidade é subjetiva. A qualidade de vida para cada pessoa tem um valor diferente, cada um vê a qualidade dos produtos de diversas maneiras, para a questão da voz é da mesma forma, subjetiva. Quando o saldo está positivo? Quando não fico rouca, quando eu consigo falar o tanto que eu falo sem ter nenhuma sensação que pese na minha garganta, na minha laringe, usando muito minha voz para qualquer situação. Durmo, aí no dia seguinte ela já está melhor, então, o sono está sendo reparador. Se ficar uma semana ou duas, mesmo num processo de resfriado, uma voz que fica rouca por mais de quinze dias, já é uma voz que temos que ter uma atenção.
Jornal Pires Rural: Ao tossir prejudicamos a nossa voz?
Alê Zalaf: Depende. Porque você tossiu? Foi um engasgo? Isso é uma defesa do organismo, portanto, uma tosse fisiológica. Ou sua tosse é em função do habito de fumar, gerando um pigarro constante? Existe um ditado; não é possível assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. A causa disso é a laringe, uma estrutura de nosso organismo que faz parte do sistema respiratório e serve para proteção de nosso corpo. Dentro da laringe temos as pregas vocais, por onde sai o nosso som e, tem uma “tampa” chamada epiglote, quando a gente engole, as pregas vocais e a epiglote fecham; estou chupando cana, estou engolindo. Quando respiro ou falo, a epiglote abre e as pregas vocais abrem ou fecham, se estou respirando elas ficam abertas, se estou falando elas se fecham. Se estou fazendo um som isso é antagônico ao engolir, por isso do ditado, é impossível assobiar e chupar cana.
A força interna da laringe é diferente, ou ela fica toda contraída para engolir, fecha pra não deixar passar nada para o sistema respiratório, porque se passa estamos engasgados e, engasgar nos coloca num risco de morte, então, a laringe protege nossa vida. Quando a gente engasga, é um ato de sobrevivência tossir, não tem o que fazer, tem que tossir pra ficar vivo. A reação é expulsar o alimento, expulsar a saliva que caiu no sistema respiratório para não ter aspiração ou até mesmo desenvolver alguma alteração no pulmão como uma pneumonia e isso fragiliza nossa saúde.
Então, a laringe existe para proteger a nossa respiração. Aí, o som produzido pela laringe fomos dando um significado, fomos atrelando a comunicação verbal, do falar, do se comunicar. A voz tem uma ligação primeira com a nossa proteção da via respiratória.
Jornal Pires Rural: O canto faz parte de nossas vidas, por influência da mãe principalmente na infância, incutiu a formação do indivíduo. É impressão ou o ritual do cantar dentro do lar, executando tarefas, embalando o sono do neném, hoje desapareceu?
Alê Zalaf: Não sei se desapareceu, o cantar é super importante para o desenvolvimento. Eu sempre cantei para o meu filho. Eu sempre gostei de cantar, é um medidor de humor pra mim. Desde quando as pessoas falavam ‘se você gosta de cantar vai aprender’, depois eu fui aprender a cantar (risos). Para a criança, todo ensino infantil passa por isso, pela música, pela repetição, porque trabalha a melodia, trabalha a memória auditiva, as questões de processamento auditivo central, trabalha sentimento, emoção. É muito presente para as crianças, tem cantiga de todos os temas.
Como disse, eu sempre cantei, eu canto menos quando estou triste. A voz é muito peculiar, tem gente que envelhece mas a voz não, veja o exemplo de Cauby Peixoto, nos últimos shows ele já não andava, colocavam ele sentado no palco, passando de seus oitenta e poucos anos, davam o microfone na mão dele e saia um vozeirão. Voz é músculo, se exercita continua-se cantando. São estruturas do nosso corpo muito pequenas e tem uma grandiosidade, por exemplo, os cantores de ópera tem um poder na voz, temos os atores, quando estão lendo e trazendo entonações na fala, na hora vem a emoção. Eu acabo pagando mico, fico prestando muita atenção, viajando no potencial de algumas vozes.
Aprender a cantar é muito auditivo, não é só ler as notas musicais, tem os instrumentos para afinar a voz, quando canta tenta colocar a voz igual. Eu não acredito em pessoas desafinadas, eu acredito em pessoas mal treinadas, é muito mais difícil para algumas pessoas, então, tem que treinar mais. Tudo é um treino. Tem músculo? Então, dá para treinar!!
Jornal Pires Rural: A voz é considerada “o tato à distância”, por isso descrevemos como aveludadas, ásperas crepitantes, macias, brilhantes, metálicas. Esse tipo de classificação faz sentido?
Alê Zalaf: Esse é poder da voz. Faz total sentido, porque ao escutar uma voz se diz isso, a qualidade subjetiva da voz que eu citei, não precisa ser um profissional para trazer a classificação. Eu brinco muito com meus alunos perguntando o que conseguimos descobrir ouvindo uma voz dizendo alô, por exemplo. Num alô eu consigo descobrir muita coisa daquela pessoa, eu posso não acertar sempre e, o que se descobre? Se é homem ou mulher, se é criança ou idoso, pode ser que eu erre mas, todos nós temos essa leitura. A voz é muito de nossa identidade. Muitas vezes as pessoas que sabem que tem uma voz que incomoda, não contam para os familiares, eles confidenciam para nós profissionais da voz. Isso tem muito a ver com a comunicação, comunicar os próprios sentimentos, características de personalidades, é através dessa relação terapêutica que a pessoa se sente a vontade para poder dizer as coisas.
Jornal Pires Rural: Ao longo da vida, a voz se modifica naturalmente quando acontecem mudanças na frequência fundamental, que é o número de vibrações por segundo. Essa mudança acontece de forma gradual para todos?
Alê Zalaf: A voz que a gente nasce não é a mesma que temos hoje em dia. A voz sofre influências dos nossos hábitos e da anatomia. Toda criança tem uma laringe do mesmo tamanho e uma frequência mais aguda. Depois, na puberdade sofremos a influência dos hormônios, temos os estirões, a laringe (masculina e a feminina) acompanha esse crescimento e o tom da gente muda. Para os homens o salto de tonalidade vocal é maior, o tamanho e formato da laringe fica diferente do que é a laringe infantil, por isso os meninos são mais desafinados, eles precisam saber “tocar” esse instrumento, muda a estrutura de onde sai o som, as nossas pregas vocais e, mudam os hábitos. No envelhecimento também, sofremos influência dos hormônios e vai mudando conforme vamos envelhecendo. Pessoas que usavam muito a voz e deixam de usar, podem ficar com uma característica de voz chamada presbifonia. Hoje em dia, com os idosos mais ativos não é tão frequente encontrar essa característica porque continuam fazendo exercícios, com a ação de cantar, por exemplo. A voz muda a vida inteira, ela muda, inclusive, de um dia para o outro.