Jornal Pires Rural – Edição 222 | SÃO PAULO, Novembro de 2018 | Ano XIII
Seminário Internacional “Conexão Comida; saberes e práticas na alimentação”, evento organizado pelo Sesc São Paulo, contou com a presença de Fábio Gomes, nutricionista, pós-doutor em nutrição, doutor em saúde coletiva, mestre em estudos populacionais e pesquisas sociais. Atualmente, Fábio é assessor regional de nutrição e atividade física para as Américas da Organização Pan-americana de Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS). O nutricionista participou do Seminário através da conferência: ‘Alimentação em favor da comida, do comer e da vida’. Acompanhe abaixo relatos da palestra.
“É muito difícil organizar uma fala sobre o comer, sobre a vida e essas relações, de uma forma linear. Quero iniciar falando de como chegamos a discutir a alimentação e os problemas relacionados, que não é só da nutrição, de outras ciências, não é só da saúde. É um problema que, de fato, ganha toda a sociedade e vários atores da sociedade começaram a discutir essa questão da alimentação como um problema e também pensar as possíveis soluções”, pontuou.
A sociedade leva tempo para reconhecer um problema social
“Se pensarmos outras questões que não eram reconhecidos como problemas, pela sociedade, temos como o exemplo o direito das crianças e dos animais. O primeiro julgamento sobre a agressão de uma pessoa a um animal aconteceu em 1882. O questionamento das pessoas sobre a agressão aos animais – até então não era reconhecido como um problema – se deu em 1824, quando foi criado no Reino Unido a primeira sociedade de prevenção à crueldade contra os animais. Mas, só reconhecemos a crueldade contra as crianças em 1874. Outros problemas, como os ambientais e o aquecimento global não eram reconhecidos até a década de 1990. Não reconhecíamos como um problema, porque a sociedade leva tempo para reconhecer um problema como um problema (real) de todos, pois, no caso do meio ambiente, desde 1920, já se percebia o aumento do aquecimento global”.
“Muitas vezes, a gente usa o conhecimento científico como o único conhecimento, como única base para reconhecer um problema e pra pensarmos soluções é importante reconhecer o conhecimento tradicional e popular que, às vezes, está numa direção e num horizonte muito além do que o conhecimento científico conseguiu alcançar. Devemos considerar esse conhecimento e os direitos garantidos como um horizonte importante para pensar as políticas e, não só o conhecimento científico como base”.
Os não alimentos e a comida de verdade
“Os dois sistemas alimentares em disputa; os não alimentos (produtos ultraprocessados) e a comida de verdade (plantado e preparado por pessoas), nos faz repensar a definição de alimento, porque dependendo do país, por exemplo, no Peru, temos 20%, noutros 30% dos sistemas alimentares dominados de alguma forma por esse sistema bem concentrado em pequenas empresas e focado no consumo de não alimentos. Pra gente pensar que tipo de estratégia e ações podem favorecer a comida de uma forma ampla e que possa atender, não só a comida que encontramos em nosso prato, mas o processo de produção e todo o sistema que desencadeia a chegada dessa comida na nossa frente. É importante pensarmos que redefinir o conceito de comida e alimentos, foi um dos elementos chaves da indústria, para que toda essa confusão gerada entre o que é comida e o que é alimento, fosse a estratégia industrial para reverter esse reconhecimento e pensar que tudo é comida”.
“Pra chegar no que realmente é comida tem uma série de elementos a ser considerados. E um deles é ter claro o que não é comida, o que não é alimento. Para outros países o conceito de comida não é tão claro. Para os hispânicos, por exemplo, o significado de comida não é tão direto como no Brasil, aqui é muito claro. Se você perguntar a uma pessoa na rua: onde é que eu posso comer? A pessoa vai lhe responder, provavelmente, que tem um lugar ali que faz hambúrguer, lanches. Quando você diz: mas eu quero comer comida. A pessoa entende e diz: ‘Ah! Comida?! Vá ao restaurante, mais a frente’. Os brasileiros reconhecem esse conceito muito bem”.
“Onde o conceito não é claro, é mais fácil a indústria confundir (o conceito de) alimento ultraprocessados com comida. Produtos ultraprocessados é o termo usado para definir o que não é comida de verdade. Trata-se de produtos industrializados, cuja embalagem traz comida de verdade estampado no pacote, contrariando o que tem dentro — que são uns bastões de farinha de batatas com sabores. O perfil nutricional das populações que comem mais ultraprocessados, tem mais calorias, tem uma densidade energética maior na dieta, comem mais açúcares, mais gorduras, comem menos fibras e menos vitaminas e minerais”.
Como favorecer a comida de verdade para a sociedade
“Uma das coisas que é fundamental para favorecer a comida é pensar que vamos precisar de cozinhas, o quão importante e o quanto a gente acompanha a evolução da cozinha na nossa vida e na sociedade. Arquitetos que estudam a história da cozinha no lar e em ambientes já pensam cozinhas coletivas, comunitárias. Repensar a cozinha como algo que não está isolado dentro de uma casa mas, como espaço central. No Peru e no México a cozinha é compartilhada por vários lares. É necessário pensar cozinhas que possam atender situações de emergência no caso de furacões, terremotos e como esse equipamento pode favorecer a presença da comida na nossa vida, no dia a dia. Transformar o cozinhar para algo que vá além do entretenimento. Alguns países já implementam políticas públicas para que as pessoas voltem a cozinhar ou vender alimentos nas ruas e, para muitos países isso ainda é uma barreira muito forte e impede que tenhamos a comida como um elemento central na vida da sociedade”.
A produção da comida de verdade
“Temos equipamentos, habilidades mas, precisa dos ingredientes, se não prestar a atenção neles não estamos conectados de onde estão vindo esses ingredientes e como estão sendo produzidos. Em algum momento quando for buscar esse ingrediente ele não vai estar mais na prateleira. A lógica de que os alimentos que eu vou consumir estão disponíveis no supermercado gera uma dependência, deixa vulnerável o sistema do qual a gente se torna dependente.
Por trás de eliminar a fome, tem formas de má nutrição e o que os países se comprometeram não foi simplesmente eliminar a fome de qualquer jeito ou a qualquer custo. Existe uma necessidade de pensar o modelo que possa resolver o problema de forma não artificial, como o fortalecimento do mercado de alimentos básicos, pra favorecer a comida não se pode ter um sistema centrado nos supermercados porque eles são desenhados para vender mais ultraprocessados.
As feiras são uma tecnologia tradicional centenária da América Latina, que precisa promover o que os supermercados ocuparam, de alguma forma. Por outro lado, se a gente só promover o sistema e não restringir, existe um desequilíbrio de poder, e pode favorecer um ou outro alimento.
O desequilíbrio entre a área plantada para não alimentos (cana de açúcar, soja, milho, algodão), pro espaço destinado para alimentos é gigante. Se tivéssemos uma melhor redistribuição, podemos fazer uma conta muito simples, um quinto da área cultivada por soja, por exemplo, seria suficiente para duplicar a quantidade de frutas e hortaliças produzidas. É preciso equilibrar o potencial de produção para o tamanho de terra e de espaço que os produtores tem para produzir. Os produtores estão produzindo em dez por cento da terra, setenta por cento dos alimentos”.
“No caso do açúcar e da soja, a área plantada está se expandindo no território de área cultivada na América Latina e Caribe, desfavorecendo o espaço para a produção de alimentos para preparar comida. Outros elementos desse modo de produção, que desfavorece a comida, é quando a planta adoece e ocorre aplicações de agentes químicos, isso empobrece o solo e dilui a quantidade de nutrientes por causa do monocultivo. Nos Estados Unidos já é constatado a diminuição de vitaminas e minerais das frutas e hortaliças, porque está diminuindo a diversidade, aumentando a quantidade e diluindo a concentração de nutrientes dessas plantas.
Em relação ao comer, o Brasil lidera essa discussão, de repensar o comer, pensar os espaços, as oportunidades, o tempo, as razões pra qual queremos promover esse comer e que seja central na nossa sociedade”.