* Wagner Romão, doutor em sociologia pela USP e professor de ciência política na Unicamp. Ex-presidente da Associação de Docentes da Unicamp – ADunicamp (2018-2020).
É um fato a desidratação da Proposta de Emenda Constitucional 32/2020 (PEC-32), chamada pelo governo federal de reforma administrativa. Isso ocorre basicamente por três motivos: 1) o fato de que o texto é realmente muito ruim e está muito longe de atacar os reais problemas da administração pública no Brasil; 2) a instabilidade política e o enfraquecimento do governo Bolsonaro junto à opinião pública; e 3) a mobilização de organizações da sociedade civil e das centrais sindicais contra a PEC.
A PEC dá entrada na Câmara dos Deputados ainda em setembro de 2020, sob a presidência de Rodrigo Maia e pouco avança em sua tramitação. Com a eleição de Arthur Lira (DEM-PB) e a designação de Bia Kicis (PSL-DF) – deputada bolsonarista – para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a PEC passa a tramitar com mais rapidez.
O texto inicial da PEC, escrito no gabinete do ministro Paulo Guedes, buscava focar em três eixos principais.
Em primeiro lugar, o ataque frontal à estabilidade no serviço público. O texto estabelecia cinco tipos de vínculos na administração pública: a) vínculo de experiência como etapa de concurso público; b) vínculo por prazo determinado; c) cargo com vínculo por prazo indeterminado; d) cargo típico de Estado; e e) cargo de liderança e assessoramento. Fundamentalmente, tratava-se da tentativa de enfraquecer o instituto do concurso público, criando uma categoria única de servidores estáveis (cargo típico de Estado) e reforçando a ideia de Estado mínimo. Os cargos típicos seriam apenas aqueles ligados às áreas de segurança pública, fiscalização, carreiras do Judiciário, entre outras
Em segundo lugar, as mudanças no artigo 84 da Constituição Federal que prevê as competências privativas do presidente da República. Dentre elas, o texto indicava que o presidente poderia, sem a participação do Congresso Nacional, extinguir, transformar e fundir entidades da administração pública autárquica e fundacional. Isto é, autarquias, fundações e empresas públicas poderiam deixar de existir numa mera canetada do presidente. Adeus ao IBAMA, ICMBio e Universidades!
Em terceiro lugar, e ainda mais grave, o único destes eixos da PEC que continua de pé: União, Estados, Distrito Federal e Municípios poderão firmar acordos de cooperação com entidades privadas para a execução de serviços públicos, compartilhando estrutura física e recursos humanos, com ou sem contrapartida financeira. Prevê-se que lei federal deverá regulamentar essa cooperação. E mais: enquanto não houver essa lei, estados e municípios poderão legislar plenamente sobre a matéria, Um verdadeiro “liberou geral” que, na prática, é a cartada final da privatização de serviços públicos na saúde, educação, assistência social, cultura… com graves prejuízos à população em geral, sobretudo a que mais precisa do Estado.
Já na CCJ o texto começou a perder força. O trecho que dava plenos poderes ao presidente da República caiu nesta fase. Não seria plausível, mesmo sob a influência do bolsonarismo, que deputados/as concordassem em perder poder político. Na Comissão Especial, já em um momento de maior impopularidade de Bolsonaro, ficou clara a fragilidade da base governista.
Substitutivos são apresentados e retirados! Passa a ocorrer uma atabalhoada negociação efetuada pelo relator Arthur Maia (DEM-BA) que busca preservar carreiras como a dos policiais, e diminuir a intensidade do ataque à estabilidade, criticada por partidos de centro e esquerda.
O texto apresentado pelo relator nesta quinta-feira, 16 de setembro, já veio bastante descaracterizado e expressa exatamente essa negociação. Retira-se a possibilidade de redução de salários e de jornada de trabalho em até 25%. Aparece a possibilidade de reaproveitamento de servidores em carreiras obsoletas que poderiam ser extintas, o que não se colocava nas versões anteriores da PEC. Inclui-se nas carreiras exclusivas de Estado a totalidade das categorias de profissionais da segurança pública (inclusive guardas municipais e agentes socioeducativos), além dos servidores do Legislativo, Judiciário e Ministério Público.
As alterações nos vínculos com o serviço público são retiradas em sua maioria, permanecendo apenas a possibilidade de contratação temporária de servidores por até 10 anos. Este ainda é um ponto a ser disputado, pois constitucionaliza algo que infelizmente já ocorre dentro da lógica neoliberal que domina o Estado no Brasil. Todas as carreiras não consideradas “exclusivas” do Estado pela visão “Estado mínimo” da PEC passariam a ser alvo das contratações temporárias, como profissionais da educação, da saúde, da cultura, da assistência social, do meio ambiente entre tantas outras.
Além da contratação temporária, permanece na PEC seu elemento central, que constitucionaliza a transferência de serviços públicos para a iniciativa privada. É a mais grave ação da reforma, que carrega grande potencial destrutivo à nossa rede de políticas públicas.
O relator Arthur Maia queria ter aprovado a PEC na Comissão Especial mas não teve voto. Ficou de apresentar texto novo na próxima terça, dia 21. Vamos aguardar! Há real possibilidade de que a PEC morra na praia. Se passar da Comissão Especial, não terá vida fácil no plenário da Câmara. Agora é hora de mais pressão sobre os deputados! O Estado precisa ser do tamanho das tarefas de redução de desigualdades sociais no nosso país e esta PEC vai no sentido contrário dessa luta histórica.