Jornal Pires Rural – Edição 201 | CAMPINAS, Julho de 2017 | Ano XII
Maria Amélia de Almeida Teles, mais conhecida como Amelinha Teles, representa a União das Mulheres de São Paulo. Ela é professora visitante da Faculdade de Educação da Unicamp; autora dos livros: ‘Breve história do feminismo no Brasil’, ‘O que é violência contra a mulher’, ‘O que são direitos humanos das mulheres’, ‘Da guerrilha à imprensa feminista’. Sendo uma referência nacional na luta pela memória, a verdade e a justiça no que diz respeito aos direitos das mulheres no Brasil. Fundadora da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e integrante da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo. Recentemente, esteve no Fórum Educação e desafios do Magistério “Gênero, Cultura e Educação”, na Unicamp.
A Ditadura Militar no Brasil e no Chile – com suas diferenças e particularidades – representou um período de autoritarismo político, violação dos direitos humanos e castração da liberdade de expressão. A tomada de poder pelos governos autoritários se traduziram em práticas de tortura, assassinatos, censura, repressão armada, perseguições e outras práticas que marcaram o período de 1964-1985 no Brasil e no Chile entre 1973-1990. O feminismo nesses dois países nascem em contraposição ao regime autoritário. No Brasil, surge em 1970 em meio ao período mais radical da Ditadura Militar, contando com mulheres que passaram pela experiência do exílio. Uma vez fora do Brasil elas fundaram grupos feministas no exterior: quatro deles ganharam destaque: o Comitê de Mulheres Brasileiras no Exterior, criado por Zuleika Alembert, exilada no Chile, na década de 1970; Grupo de Autoconsciência, fundado por Branca Moreira Alves, em Berkeley, Estados Unidos, início anos 1970; o Círculo de Mulheres Brasil em Paris, fundado em abril de 1976, por um grupo de mulheres brasileiras e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris, fundado por Danda Prado, na França, em 1972.
Segundo o relato de Amelinha, ela se faz a seguinte pergunta: “neste momento em que estamos sendo encurralados, mas considerado um momento em que nós sabemos que a nossa resistência é o que garante que atravessemos esse momento tão difícil eu me pergunto: Que Estado é esse em que vivemos? Diria que é de exceção, porque as instituições construídas no Estado Democrático de Direito em 1970 em plena Ditadura Militar, num momento de trevas no Brasil, nós mulheres trouxemos a discussão do feminismo, as discussões sobre o setor privado para o poder político, trouxemos questões referentes ao corpo, sexualidade, durante a Ditadura (Militar)”, afirmou Amelinha.
Para Amelinha, a universidade não oferecia espaço aos debates e mobilizações das mulheres, os partidos políticos eram clandestinos e mal conseguiam sobreviver com uma visão muito distante da sociedade. “Nós mulheres não tínhamos referências – éramos consideradas uma geração só – não tínhamos como recorrer a questões internacionais como hoje em dia. Nós baseávamos no direito de escolha num período em que a gravidez não era compulsória como hoje, naquele período a mulher era obrigada a ser mãe. O interessante é que promovemos a mobilização das mulheres num período sem internet e celular, sem acesso a material de entidades de outros países como Organização das Nações Unidas – não podíamos nem copiar o que estava acontecendo na Europa e Estados Unidos. Muito raramente recebíamos um material bibliografado ou escrito a mão. Tratava-se de um grupo provinciano, tímido”, observou Amelinha.
A construção do movimento feminista foi sendo modelado com o tempo, através de avaliações permanentes e aceitação das dificuldades. “Fizemos formação marxista, tínhamos presas políticas, fomos buscar as mulheres da periferia com muito cuidado e quando nos reuníamos, éramos surpreendidas durante as conversas com assuntos sobre sexualidade trazidos por elas como algo natural da vida feminina”, conta Amelinha.
Juntamente com a luta contra a opressão, acusada pela ditadura, as mulheres irão somar o combate a opressão no espaço doméstico, através do slogan criado por Julieta Kirkwood: “Democracia em el país en lá casa!”. “Quando nos aproximamos das mulheres sindicalizadas aparece alguma discussão relacionada ao tema creche. Nós repudiávamos a divisão sexual no trabalho, a gravidez compulsória e como é que íamos criar creches! A creche era vista pelas mulheres como um orfanato, um asilo assistencialista. Com essa conotação como íamos apresentar a creche ao público? A criação de creches foi discutido através de uma plataforma política, direito à saúde integral das mulheres, luta contra a violência das mulheres, direito ao trabalho igual para homens e mulheres. Uma luta que acontece até hoje e estou falando de fatos e mobilizações de 1979 mas, infelizmente tudo isso é atual”, afirmou Amelinha.
Movimento de Luta por Creche
Surgem vários grupos de conscientização e em 1975, estimuladas pela instituição do Dia Internacional da Mulher pela Organização das Nações Unidas – ONU, ocorrem reuniões no Rio de Janeiro e em São Paulo que resultaram na criação do Centro da Mulher Brasileira (RJ), e do Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira (SP). Em 1979, acontece o Primeiro Encontro Nacional de Mulheres e, na década de 1980, já existem dezenas de grupos feministas por todo o país. Este é o momento em que começam a surgir lutas mais dirigidas: são criados vários clubes de mães, acontecem diversos congressos de mulheres e atos públicos, e ganham espaço lutas feministas como o direito ao corpo e a sexualidade.
“Grupos de mães e donas-de-casa, organizações em clubes de mães, associações ou sociedade de amigos de bairro se reuniam nas igrejas para debater custo de vida, baixos salários e creche. Assim as mulheres da periferia de São Paulo começaram reivindicar creche. Em 1973, nasceu a luta por escolas. Uma manifestação com mais de 500 mulheres na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 1976. Mas no Primeiro Congresso da Mulher Paulista, em 1979, foi permitido a criação do Movimento de Luta por Creche, o qual levou a um grande debate ideológico a respeito do papel da mulher e da família e o combate ao caráter de orfanato ou de depósitos de crianças que caracterizavam as poucas creches existentes”, abordou Amelinha.
Quando a creche nasce desafia o trabalho doméstico e a maternidade compulsória. Discutíamos e pensávamos a creche com tudo o que ainda é discutido hoje – educação não sexista, racismo – o que ficou pra nós é que nunca trabalhamos gênero de forma isolada. Tivemos que inventar essa creche, um momento interessante porque em 1970 éramos muito jovens e metemos a fazer e fizemos com coragem. No início dos anos 1980, vem acontecer ‘Diretas Já’, fomos exigir a creche pública, numa fase próxima a Constituinte de 1988, discutindo direitos da criança, construímos essa criança humana que precisa de cidadania de forma empírica porque ela tem a possibilidade de pensar, sentir. “Trouxemos” essa criança para a discussão pautada na nossa vivência comunitária coletiva, antes de elaborar definitivamente a Constituição”, explicou Amelinha.
Sem apoio de partidos e sindicatos
A rejeição enfrentada pelo grupo de mulheres feministas em São Paulo, por parte da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, na época, foi marcada pelo presidente Mário Amato. Ela conta, “o Mario Amato era contra a creche, licenças maternidade e paternidade mandou nos chamar pra dizer que estávamos loucas em reivindicar creche pública. Dizia ele,”a creche pública é uma ameaça social para as empresas” – com crianças berrando dentro das fábricas. A licença paternidade eles diziam: “Esses homens já gostam de faltar, agora, vão querer ficar em casa”. Não tínhamos apoio de nenhum sindicato e de nenhum partido no direito a creche, licenças maternidade e paternidade, inclusive as próprias trabalhadoras, elas argumentavam que seriam demitidas e a licença paternidade não apoiariam porque tinham acabado de parir e ainda teriam que aguentar o homem dentro de casa. Toda essa discussão fizemos sozinhas com outras mulheres não feministas”, destacou Amelinha.
Segundo ela, se a Constituição existisse pra valer com tantos direitos ali escritos o nível de desenvolvimento do Brasil seria muito melhor. “A década de 1990 foi considerado uma década perdida porque não conseguimos a efetivação dos direitos escritos na Constituição. Após a Constituição aconteceu o impeachment de Fernando Collor, e toda aquela política confusa retrocedeu os avanços e, quando ocorrem sufocos corremos atrás dos direitos. Hoje, temos muito mais creches conveniadas do que públicas. As creches conveniadas vão cair no mesmo problema que vocês estão colocando como assistencialismo. Hoje está muito forte em todas as políticas que aparece, que é igualdade de gênero mas, sob uma perspectiva de educação como normativa – esse é o desafio – a creche tem status político mas não oferece um espaço democrático, anti-racista, anti-sexista, anti- homofóbica. Foi assim que pensávamos a creche. As nossas crianças e adolescentes ainda não são vistas como sujeitos, são vistas como pobres, como menores, apesar de termos o Estatuto da Criança e do Adolescente”, finalizou Amelinha.