Jornal Pires Rural – Edição 234 | CAMPINAS, Novembro de 2019 | Ano XIV
O debate é fundamental para podermos compreender, estudar mais, refletir sobre os tempos que estamos vivendo e entender as cidades, para que possamos atuar de uma forma mais inteligente e qualificada em todas as áreas do conhecimento.
Abordando a crise na habitação, negros nos territórios precários, população em situação de rua, os “centros” das cidades – palco de disputa explícita e visível e os movimentos mais organizados – grandes projetos de engenharia pelo interior do Brasil e as injustiças territorial, com cenas das disputas iníquas e alguns caminhos de esperança, prof. Dr. Francisco Comaru (do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC), participou do Fórum “A cidade em disputa” (leia mais), realizado na Unicamp, tratando do tema: “Resiliência e participação na cidade (in)formal”.
Inicialmente abordando a disparada dos preços do imóveis em relação a inflação, ele reflete, porque as pessoas não conseguem morar de uma forma digna. “A grande maioria tem uma dificuldade enorme para pagar aluguel. A concentração de emprego e infraestrutura em regiões centrais das cidades e as moradias em “crescente espraiamento desnecessário, de alto custo, para áreas marginais das cidades, em loteamentos clandestinos, irregulares e favelas, causa um impacto no meio ambiente, na saúde e traz injustiças enormes para os cidadão”.
O Estado ausente
Visitando locais na zona norte de São Paulo, como Nova Paris, perto da Brasilândia, juntamente com pessoas do ‘movimento popular’, como alunos nas universidades, o professor verificou que são loteamentos clandestinos e ocupações. “Aprendemos e vemos a realidade levada por eles. Esse local, é uma mistura explosiva de obra grande, Rodoanel, vereadores com os velhos esquemas de clientelismo, tráfico e igrejas evangélicas. Visitando o Nova Paris, vi que é uma área de risco, o pessoal com casas em auto-construção e ao mesmo tempo lugares relativamente organizados, casas de determinado padrão. Distante 400 metros de uma alça do Rodoanel, o Estado é ausente totalmente, só tem a obra do Rodoanel que não dialoga com a comunidade. Quando foi feita o Eia/Rima do Rodoanel – licenciamento ambiental – os engenheiros diziam que o Rodoanel iria funcionar como uma espécie de barreira, teria um efeito tampão. Teve gente que acreditou que o povo não iria morar do outro lado do Rodoanel. Estamos vendo o que aconteceu. Esse pessoal não ocupou essas áreas porque é rebelde ocupar. Ocupou porque não tem alternativa de moradia”, destacou.
Questionando quando as pessoas que não conseguem pagar aluguel, onde estão indo morar, prof. Francisco frisa, “em um loteamento clandestino, com muita pobreza, materiais de construção muito precários, unidades sem banheiro, sem pavimentação. Estamos indo na extrema periferia para visitar, tentar conhecer. É uma pobreza muito grande que tentamos nos aproximar. Um estudo recente de 3 favelas de São Bernardo do Campo, SP, elaborado através do indicador de habitabilidade, como número de pessoas por cômodo, densidade, área de risco, acesso a serviços, materiais de construção da casa cruzando com dados sobre raça e etnia do chefe da família, coincidem o chefe de família ser negros, pretos ou pardos. A gente já sabe disso mas, é bom falar, porque a política habitacional tem que incluir essa dimensão. Gênero e pessoa com deficiência teve alguns avanços mas, raça e etnia avançou muito pouco nessa política”, apontou.
População de rua
“Já é conhecido o mecanismo que levam as pessoas a irem morar na rua mas, conhecemos pouco os processos sob os quais as pessoas deixam às ruas e vão morar em uma casa. Atendidas pelo ‘minha casa, minha vida’ ou foram morar de aluguel, todo mundo se adapta a uma melhora, existem casos da pessoa estarem morando por 50 anos na rua e se adaptou a uma residência. É ter uma chave no bolso e saber que tem um lugar pra voltar, que é a tua casa. Piorar é complicado, piorar é que não nós adaptamos. A população de rua não para de aumentar, é um indicador muito grave das nossas cidades e eles são sujeitos a muitas violações, muito agressão. Tenho história de que uma mulher foi morar na rua depois de ser estuprada pelo tio e a família não aceitava, coisa de culpabilizar a própria vítima. Não aguentando a pressão, ela saiu de casa e foi morar na rua. Ouvir histórias de que a pessoa foi morar na rua por querer, não é assim, temos que ter pesquisas aprofundadas, para entender a trajetória dessas pessoas, porque tantas injustiças levam a essa escolha de morar nas ruas. Do ponto de vista da economia, são pessoas descartáveis, da ideologia dominante são pessoas desprezíveis e do desenvolvimento social são pessoas irrecuperáveis. As pessoas em situação de rua que tiveram acesso à moradias não mostrou isso nos estudos que fizemos. Por isso acho que a academia deve penetrar em todas as dimensões para pesquisar”, salientou.
“Toda a produção habitacional do centro de São Paulo, de 1989 até 2014, em 25 anos, somando tudo o que foi produzido, deu 6.300 moradias. Isso dá uma média de 250 por ano. Isso é pouco ou é muito? Numa cidade de 12 milhões de habitantes, é pouquíssimo, irrisório. Foram habitações, produzidas com muita luta, quase arrancado com muito suor, atos, ocupação, muitos presos. Então, estamos falando de uma disputa. Tem ainda, a questão políticas pois, diversas ocupações de prédios que pertencem ao Estado, não foi dado o fim social. Isso nos levam a várias reflexões teóricas e conceituais como a cidade como um território extenso, criminalização da pobreza, criminalização do comportamento inocente, criminalização da vulnerabilidade, aumento do número de ocupações, exílio dos pobres nas periferias, alto custo da terra urbana e dos alugueis, desemprego e subemprego crescente”.
Quem ocupa é um criminoso ou desesperado?
“Depois que teve o incêndio e a queda da torre de vidro (prédio Wilson Paes de Almeida, no Largo Paissandu, centro da cidade de São Paulo), foi montado uma comissão pois, houve uma preocupação de ter uma onde de interdições de tudo quanto é prédio do centro de São Paulo, foi uma comoção, saiu no noticiários nacional e internacional. Em vista disso, foram levantados que existiam 52 prédios ocupados no centro da cidade. Eu participei de visitas nesses prédios. Trabalhando há 25 anos com habitação na área central, eu achava que conhecia mas, cada habitação que entrava era um novo aprendizado. Cada ocupação tem uma história de origem das pessoas, uma forma de organização. Pensamos em trabalhar com a possibilidade de melhoria de habitabilidade. Toda ocupação pode ser melhorada se tiver um pequeno investimento. Fomos dialogando com a Prefeitura, uma parte super difícil. Tivemos que organizar uma resistência através de defesa jurídica, mobilização de rua, atos, pautar autoridades parlamentares, tratar da questão com jornalistas, uma das estratégias adotadas pelos movimentos populares para segurar remoções, comprar laudos, assessorias técnicas. Enquanto tudo isso acontecia, por outro lado, os agentes do setor imobiliário estão capturando a mais-valia, trabalhando para a valorização decorrente dos investimos, feitos com financiamentos públicos”, revelou.
Grandes projetos de desenvolvimentos pelo interior do Brasil
A construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte em Altamira, PA, impactou na saúde da população, aumentando as taxas de homicídio e tornando o município o mais violento do Brasil, dos 5.500 existentes, hoje. “O Pará já é uma região complicada e Altamira tem todos os ingredientes para todos os tipos de impactos à saúde da população associados a uma Usina e ainda tem uma taxa impressionante de homicídios. Existe uma metodologia da saúde pública chamada “Avaliação de impacto à saúde”, que deveríamos usar mais para grandes projetos. Não passar apenas pelo crivo do meio ambiente, tem que passar pelo crivo do impacto à saúde das pessoas porque, aumenta a prostituição infantil, aumenta doenças sexualmente transmissíveis, aumenta o preço da terra, aumenta os alugueis, aumenta o número de casas noturnas, aumenta o número de problemas com o alcoolismo, aumenta o tráfico de drogas, aumenta o número de suicídios e o número de homicídios. Entrevistando a população foi feita a pergunta se a Usina tem alguma relação com a violência? Uma moradora respondeu: ‘a Usina é a violência !’ Então, como trabalhar a dimensão de justiça territorial, nesse Brasil que é um país enorme, sem cometer injustiça com quem será impactado?”, questionou Francisco.
Os elementos pra refletir citado pelo professor são os erros dos governos de esquerda quando eles abrem “janelas” para o mercado, com as operações urbanas implantadas (regras urbanísticas específicas, como incentivos à construção de moradias próximas ao eixo de transporte e requalificações do meio urbano para determinada área da cidade). “Depois a esquerda sai do poder e vem o governo de direita e arrebenta a cidade. Temos uma questão para refletir, será que estamos voltando para os anos 80, com a complexidade do tráfico, das milícias e das igrejas evangélicas? Outra demanda que faz diferença é quando a universidade se abre para os movimentos populares, instituindo cota, e também quando tem a chance de entrarem na pós-graduação mulheres negras, negros e deficientes físicos. Quero terminar falando sobre a pedagogia do confronto: nas ocupações da área central tem um aprendizado coletivo, ninguém sai de uma ocupação do jeito que entrou, e a regra é: não temos direito de não ter esperança, porque se a gente não tem esperança a gente mata a esperança do outro e não temos direito de matar a esperança do outro. Temos obrigação de ter esperança. Ainda mais nesses tempos!”, finalizou Francisco Comaru.
Para entender mais, “O papel da procuradoria de justiça na cidade em disputa” traz a reflexão do Dr. Valcir Paulo Kobori do Ministério Público do Estado de São Paulo, sobre o tema.