Com a ousada meta, através do projeto de lei 259/20, o governador do Estado de São Paulo, João Doria Jr., quer reestruturar a Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA) e pretende extinguir dez autarquias, fundações, empresas públicas e fundos.
Para comentar e esclarecer qual é a abrangência e qual impacto isso trará para os agricultores familiares, entrevistamos Sergio Rocha Lima Diehl, 69 anos, engenheiro agrônomo formado pela ESALQ/USP (1975), com larga experiência nas áreas de assistência técnica e extensão rural e atual presidente da AGROESP (Associação dos Assistentes Agropecuários do Estado de São Paulo), com sede em Campinas, SP. A AGROESP, foi fundada em 1985, é uma entidade jurídica de direito privado e sem fins lucrativos, que congrega profissionais de nível universitário conhecidos por Assistentes Agropecuários, lotados em três das quatro Coordenadorias da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo: Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável – CDRS (antiga CATI), Coordenadoria de Defesa Agropecuária – CDA e Coordenadoria de Desenvolvimento dos Agronegócios – CODEAGRO. Leia a entrevista a seguir;
Jornal Pires Rural:Como tomou conhecimento da notícia da reestruturação da SAA? Ela vem sendo discutida internamente, vem de outros governos ou é um nova iniciativa implantada no governo Doria?
Sergio Diehl: A reestruturação proposta é iniciativa do Governo João Doria. Foi elaborada de maneira unilateral pelo gabinete do Secretário de Agricultura e Abastecimento, Gustavo Junqueira, sem dialogar e entender as reais demandas de quem está, de fato, na ponta deste processo, que são os pequenos produtores rurais, os produtores familiares e os profissionais que os atendem. E também as prefeituras, principalmente dos pequenos municípios, já que a intenção dessa reestruturação é passar as funções de assistência técnica e extensão rural para a municipalidade. Esta ação teve início logo nos primeiros dias da gestão Doria, com a desconstrução institucional da CATI (Coordenadoria de Assistência Técnica Integral), que teve o seu nome modificado para CDRS (Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável). Esta mudança tem um grande impacto negativo, pois descaracterizou uma instituição com mais de 54 anos e que atua presencialmente junto aos pequenos produtores, inclusive na orientação para um desenvolvimento sustentável da produção rural. Em continuidade ao processo de desconstrução institucional veio a proibição da circulação da revista “Casa da Agricultura”, do último quadrimestre de 2018, que também foi uma decisão tomada pelo secretário sem qualquer consulta prévia, impedindo que as prestações de contas das atividades da CATI chegassem até a população.
Jornal Pires Rural:O que abrange essa reestruturação em termos de autarquias, fundações e empresas públicas e fundos?
Sergio Diehl: A proposta de reestruturação apresentada envolve todas as Unidades da Secretaria de Agricultura e Abastecimento. O Secretário Gustavo Junqueira pretende criar uma estrutura gigantesca em seu gabinete, toda voltada para as atividades meio e determina a extinção das unidades que executam as atividades fim, que são as Casas da Agricultura e as Inspetorias da Defesa Agropecuária. Hoje o Estado possuí 341 mil propriedades rurais, sendo que 273 mil são pequenos produtores e destes, 113 mil possuem a Declaração de Aptidão da Agricultura Familiar – DAP, público considerado prioritário e que necessita do apoio do estado, pois, não tem condições de contratar consultorias ou pagar pela assistência técnica.
Jornal Pires Rural: Essa reestruturação segue algum modelo internacional implementado lá fora ou mesmo em alguma região do Brasil? O que pode nos trazer de exemplo na América Latina ou na Europa de extensão rural para a agricultura familiar no século XXI?
Sergio Diehl: Essa proposta de reestruturação não segue modelo algum, pois na realidade trata-se mais de um enxugamento da estrutura do que propriamente uma modernização. A real intenção é passar as atividades de assistência técnica e extensão rural para a iniciativa privada e para os municípios e, terceirizar atividades da defesa agropecuária. O governo quer um estado normativo, fiscalizador e formulador de políticas públicas para os outros executarem. Enxerga o estado como um instrumento para abrir oportunidades para a iniciativa privada e não como um prestador de serviços para os setores mais carentes da sociedade, que dependem do apoio do estado para prosperarem em suas atividades.
Jornal Pires Rural:Essa restruturação seria pra embarcar, englobar todos os pequenos produtores rurais deste país num modelo de acesso a tecnologia na agricultura?
Sergio Diehl: Isto é uma premissa equivocada. Aparentemente a ideia inicial é modernizar todos os processos no Estado de São Paulo, porém, o acesso a tecnologia não será fornecido pelo Estado, dependendo de cada pequeno produtor conseguir viabilizar o próprio acesso à internet e outras formas de modernização. Dentre os produtores rurais paulistas, 55,7% tem só o primeiro grau e apenas 12,5% acessam a internet para fins agropecuários, isso quando possuem computador. Mais da metade deste público são idosos e a maioria não consegue transformar informação em conhecimento e dependem do contato direto com as Casas da Agricultura de seus municípios para receber as orientações técnicas necessárias.
Jornal Pires Rural: Certamente essa restruturação é questão da gestão e da governança, frente há tantas mudanças numa economia de mercado, num mundo pós-aplicação da tecnologia 4.0, onde seremos a sociedade 5.0, onde a tecnologia será incorporada por meio da agricultura, produzindo uma alimentação, que ao mesmo tempo alimenta, ao mesmo tempo lhe mantém são. Como o pequeno produtor terá acesso as essas tecnologias e qual o modelo ideal para a extensão rural?
Sergio Diehl: Gestão e governança não se fazem apenas fazendo prevalecer a intenção do governo, de forma unilateral e intransigente. O público beneficiário dos serviços prestados pelo governo deve ser consultado, por meio de suas lideranças ou de qualquer outro processo democrático. Apesar dos avanços tecnológicos, o setor rural, principalmente onde ficam as pequenas propriedades, ainda carecem de investimento em tecnologia. Basta uma volta pelas estradas vicinais do interior de São Paulo para identificar muitos pontos sem qualquer sinal de telefonia celular e, muito menos, internet. Outro ponto importante é o conhecimento para lidar com novas tecnologias. Infelizmente, a maioria dos nossos pequenos produtores e agricultores familiares não tem o conhecimento que permita uma modernização de procedimentos avançada. Ainda dependem do trabalho presencial dos técnicos para o aprimoramento das suas atividades.
Jornal Pires Rural: Em uma entrevista recente, Gustavo Junqueira disse: “Não vejo nenhum prejuízo (na reestruturação) porque primeiro, nada muda. Todos os servidores tem o seu emprego garantido, ele vai ter uma melhoria em termos de tecnologia pra ele poder trabalhar, com muito treinamento”. Como isso é visto pelos servidores?
Sergio Diehl: O que está em jogo não é o emprego dos atuais servidores e sim o futuro do trabalho de assistência técnica, extensão rural e defesa agropecuária no Estado de São Paulo. A reestruturação proposta não beneficiará ninguém, nem o setor rural nem os servidores que atuam junto a ele. Apenas dará uma falsa ideia de modernização e economia, pois está alicerçada em premissas totalmente equivocadas e a economia proporcionada ao governo será pífia.
Jornal Pires Rural: Na mesma entrevista, Gustavo Junqueira, falou que essa reestruturação vai dar “ao técnico agrícola sua a única e exclusivamente atividade fim: põe ele na camionete pra ir na produção ajudar o produtor a entender como é que tá a relação com o mercado, como é que ele pode ganhar mais dinheiro”. Com sua experiência na extensão rural concorda que até agora a extensão rural não ensinou o produtor a ganhar dinheiro e a gestão Doria cumprirá esse objetivo?
Sergio Diehl: Não concordo. A extensão rural não só ajuda o pequeno produtor a ganhar dinheiro, mas também já ajudou a tirar muitos da falência por meio do incentivo à organização rural, agregação de valor aos produtos e visitas de orientação nas propriedades rurais. Nos últimos 7 anos a extensão rural de São Paulo apoiou mais de trezentas organizações de produtores rurais, desde a sua organização até repassar recursos para construírem pequenas agroindústrias para agregar valor aos seus produtos e melhorar as suas condições de acesso ao mercado. As Casa da Agricultura e a Defesa Agropecuária atuam também para atender as necessidades não sentidas pelos produtores rurais e pela sociedade em geral, como a preservação de mananciais, a conservação do solo, o incentivo a adoção de práticas sustentáveis e a segurança alimentar. O trabalho da extensão rural e da Defesa Agropecuária não começou no governo atual. Tem todo um passado exitoso que o Secretário Gustavo Junqueira insiste em ignorar, principalmente quando abdicou do Programa Microbacias III, no valor de 105 milhões de reais, cujo acordo de empréstimo já tinha sido aprovado pelo governo anterior e pelo Banco Mundial. E, hoje não tem dinheiro para modernizar nada, já que o orçamento da Secretaria da Agricultura e Abastecimento não chega a 0,3 %. Hoje, a Secretaria da Agricultura é mais discurso e marketing do que ações propriamente ditas, já que, passados quase dois anos desse governo, não existem diretrizes de trabalho, programas ou projetos com objetivos e metas definidos, cronograma de atividades, alocação de recurso, parâmetros de acompanhamento e avaliação. O secretário Junqueira alega que a reestruturação proposta por ele visa o futuro, mas se não atender as necessidades do presente, este futuro estará comprometido.