Jornal Pires Rural – Edição 225 | CAMPINAS, Fevereiro de 2019 | Ano XIII
O Fórum “A cidade em disputa”, teve o objetivo discutir elementos centrais sobre o processo político econômico, cultural e ambiental de produção do espaço e sua desigual distribuição, assim como os caminhos que poderiam ser (ou tem sido) adotados por organizações sociais, movimentos sociais e agentes públicos para enfrentar a questão.
O Dr. Valcir Paulo Kobori do Ministério Público do Estado de São Paulo esteve presente no Fórum, realizado pela Unicamp e participou da mesa: “Os agentes da disputa: as gentes na disputa”, com o tema “O papel da procuradoria de justiça na cidade em disputa”. (Leia mais sobre o Fórum “A cidade em disputa”: Processos da produção do espaço em grandes metrópoles)
Dr. Kobori inicia sua fala discorrendo sobre o panorama do que é o Ministério Público e qual é o seu papel, convidando a todos a ter a curiosidade em buscar e ler a Constituição Federal, “leiam só o título um e o dois. É mais do que suficiente para vocês entenderem o que é o Brasil, qual é o Brasil que se almeja, qual é o pacto que nós firmamos em 1988”, sugere.
O artigo terceiro da Constituição constitui objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de descriminação.
Segundo Dr. Kobori, não precisamos falar mais nada. Nenhuma outra lei seria necessária, está tudo resolvido aqui. “Mas essa é a Constituição de 1988 – que meus colegas constitucionalistas já não reconhecem mais. Eu quis ler esse trecho porque o Ministério Público, se insere dentro das estruturas do poder do Estado. O Ministério Público insere no artigo 127 como uma instituição permanente essencial a função jurisdicional do Estado e a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais, individuais indisponíveis – são termos técnicos difíceis e chatos. Basicamente compete ao Ministério Público defender o interesse público (olhem que interessante), isso nos dá um leque de orientações possíveis. Mas, quem é que define o interesse público? O que o Ministério Público defende? A constituição é um bom norte, é a lei maior. E isso é uma diretriz de ação para o Ministério Público? Defesa do regime democrático, quando é que o Ministério Público se manifesta e pede participação popular nos projetos de lei e defesa do regime democrático – está na constituição. A gente pode e deve fazer isso”, afirmou.
É certo que o Ministério Público é defensor da ordem jurídica. Tem uma atuação majoritária no combate à criminalidade. O Ministério Público também tem uma atividade que é a área cível, notadamente marcada pela defesa dos interesses individuais indiscutíveis, sociais, difusos e corretivos.
Na área individual indisponível, é mais fácil pensarmos em população do estado de vulnerabilidade como as pessoas com deficiências, indígenas, idosos, menores, incapazes, qualquer pessoa em estado de vulnerabilidade tem o Ministério Público como órgão de defesa.
De acordo com Dr. Kobori, o Ministério Público, tradicionalmente, atuava nesta área mas, a partir de uma revolução histórico processual o Ministério Público passou também a ser legitimado para a defesa dos interesses difusos e coletivos. “Para entender: o direito tradicionalmente foi feito dentro do poder individual – você quebrou o meu muro eu entrei com uma ação pra você refazer o meu muro (indivíduo compreende indivíduo) mas, com o passar do tempo nós identificamos que nós temos bens e valores que são supra individuais – não é meu, não é seu – mas, se não é meu e não é seu, quem é que defende? Então, quer dizer que o meio ambiente pode ser atacado? Quem é que tem direito a transporte coletivo justo e de qualidade? Todo mundo? Mas, quem é que pode defender? Então, dentro desta lacuna foi imaginada a teoria processual, a teoria de defesa dos direitos difusos e coletivos. Essa defesa foi atribuída a vários legitimados ou seja, órgãos ou entidades que podem fazer a defesa. O Ministério Público é apenas um deles”, explicou.
Outros órgãos como partidos políticos, União, os municípios, associações, são órgão que podem fazer a defesa. Por isso, o Ministério Público se faz presente num evento como e onde se discute a cidade em disputa, os conflitos agrários, o direito à habitação – artigo sete na Constituição – é um direito social. “Não tem como não pensarmos: porque as pessoas ocupam áreas de riscos? Por que elas ocupam áreas de inundações, com deslizamentos? Esse país é tão grande. Por que as pessoas não conseguem ter acesso a uma unidade habitacional legal com matrícula em cartório para esfregar na cara de qualquer um e dizer, essa casa é minha? É minha! O que vocês precisam é de matrícula no cartório de registro de imóveis. Não é termo de posse, de sessão, contrato de gaveta – isso não se precisa para a garantia plena de direitos”, destacou.
Dr. Kobori faz alguns questionamentos sobre o que impede a população de ter acesso a essas garantias. “Por que existe o termo marginal? Aquele que vive a margem da sociedade e não está dentro da legalidade. E aí, dois motivos óbvios aparecem, o primeiro é o alto custo da terra e o segundo é a obscena distribuição de renda do país – as pessoas não ganham o suficiente para comprar uma casa, só isso. Ninguém invade porque quer. Ninguém fica em área de risco porque quer. E outra coisa, ninguém quer morar há duas horas do trabalho. O paulistano já se acostumou com isso e a região metropolitana de Campinas está caminhando pra isso. São duas horas no trânsito que uma mãe e um pai são privados do convívio dos filhos e se o menino entra na criminalidade a culpa é do pai e da mãe. Os pais não tem helicóptero para chegar mais cedo então, ficam por duas horas no trânsito. Porque eles foram mais uma vez marginalizados – colocados à margem da cidade, nos lugares de pior acesso que o mercado imobiliário não quer” assinalou.
Novamente Dr, Kobori traz mais provocações sobre a melhoria da renda da população é uma coisa muito difícil – dá trabalho fazer uma política macroeconômica. Pergunta, “será que conseguimos mexer no preço da terra? Mexer no preço da unidade habitacional? Acho que a gente consegue. Nós temos os instrumentos pra isso. Nós temos o estatuto das cidades pra isso. Nós temos o plano diretor pra isso. Mas a gente está conseguindo? A gente não está conseguindo. Nesse conflito, nesse jogo, o tabuleiro é inclinado, esse jogo não é justo. Os jogadores não jogam em igualdade. A população não está em igualdade com os grandes proprietários de terras, os grandes especuladores. Esse é um jogo injusto. Se morre e se mata dentro desse jogo”, frisou.
Diante das indagações, Dr. Kobori orienta o público presente como estudantes, professores de arquitetura e urbanismo a se aprofundar um pouco mais no assunto. “Quais são os instrumentos previsto no estatuto das cidades pra assegurar a função social? Quais são? Nós estamos implantando isso no município? Uma pesquisa apontou apenas 2% dos municípios. E porque isso não acontece se está no estatuto, está na lei? Porque não há interesse de quem manda. As coisas só mudam ou não mudam nesse país quando há interesse”, afirmou.
Chegando ao ponto do conflito
“Quero dizer, eu não quero aqui, demonizar o mercado ou santificar a esquerda nem a direita, isso não é minimamente inteligente porque quando a gente fala em conflito, em luta, a gente tenta sempre tomar partido – nós estamos defendendo quem?
Dentro desse contexto de luta, eu gostaria de colocar algumas considerações. Acho que as arenas, os ginásios, os ringues de luta mudaram, mudaram senhores, e não foi só por causa da campanha virtual, das fake news. Eu tenho pra mim que a maior lesão ambiental feita nos últimos anos no país se chama Código Florestal – que podemos chamar de código da produção rural e não código florestal. Quando esse Código Florestal apareceu, as entidades ambientalistas surtaram, começou-se investigar como essa lei foi produzida, qual foi o critério, como foi a representação, infrações, inconstitucionalidade. Mas, olhem que interessante, você tem uma lesão ambiental provocada por lei. Então, meus senhores, a arena mudou, a arena hoje, são as casas legislativas – essa é a arena da luta, hoje. Essa é a arena que todos os movimentos e os interessados devem acompanhar sem abandonar as arenas tradicionais. Digo isso porque na parte urbanística existem leis de regularização fundiária que é um desastre (tá cheio de ‘cavalo de Tróia’) coisas que passaram na última hora, na emenda, e ninguém prestou atenção e está lá como os instrumentos previstos para a Amazônia Legal que vão poder ser utilizados no país inteiro. Percebam os senhores, são anos e anos de luta de movimentos, de regularização, de fixação de conceitos, que foram atropelados e de uma certa forma prejudicado a ordem urbanística”.
“Como estudantes, vocês fazem parte de uma elite, vocês são a elite, são jovens, e quais são os limites para os senhores? Os senhores não tem limites, os senhores têm poder. Com grande poder vem grande responsabilidade. Um dos maiores problemas desse país: quem tem poder não tem responsabilidade – é imune a isso – se toma decisão equivocada ninguém é responsabilizado, ninguém leva dedo na cara, nesse país. Nós temos que mudar a cultura de participação nesse país, urgentemente. Porque a gente tem irresponsabilidade, a gente não gosta de ser responsável”, concluiu.