Jornal Pires Rural – Edição 190 | CAMPINAS, Junho de 2016 | Ano XII
Reconhecida como uma referência no Brasil, na América Latina e internacionalmente, a profª Drª Sônia Bergamasco falou sobre “Política Agrária e Agricultura Familiar Brasileira” durante o “Colóquios Unicamp Ano 50”. Engenheira agrônoma graduada pela Esalq/Usp, atualmente é professora colaboradora da Unicamp, atuando nos Programas de Doutorado em Ciências Sociais e de Pôs-Graduação em Engenharia Agrícola, ela também é bolsista do PNPVS (Programa Nacional de Professor Visitante Sênior), junto à UFSCar – Araras, atuando no Programa de Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural.
A professora define o assunto “Reforma Agrária e Agricultura Familiar” como dois temas polêmicos acadêmico e politicamente. “Durante toda a minha vida acadêmica e agora na aposentadoria, sempre tive que lutar e impor para colocar esse tema dentro da discussão por onde eu passei”, inicia Bergamasco. Mas a pergunta ainda persiste diante de tantas polêmicas que acompanham a história do país: existe ainda uma questão agrária no Brasil?
Para Bergamasco, o Brasil ainda tem uma questão agrária a ser resolvida, alguns economistas e cientistas sociais afirmam que esse assunto está superado dado a pujança do agronegócio. Tais afirmações sobre a importância e a viabilidade da agricultura familiar no Brasil tem levado o assunto a embates acadêmicos fortíssimos.
Capitanias hereditárias
Porque dizemos que há uma questão agrária no Brasil? Temos uma herança histórica muito forte nesse sentido, pois, o Brasil foi dividido em dois grandes latifúndios e ainda carrega esse peso histórico. Depois do tratado de Tordesilhas, Portugal dividiu a costa brasileira em 12 faixas de terra e doou essas terras para grandes senhores com recursos e escravos. Isso caracteriza na história do Brasil a criação de grandes latifúndios nas chamadas capitanias hereditárias. Por mais que seja um assunto antigo, são doze faixas de trezentos quilômetros de largura entregue nas mãos de poucas pessoas. Para Bergamasco, esse é o grande problema até hoje, ou seja, a forte concentração de terras no Brasil.
Apesar das capitanias hereditárias dizer garantir a posse das terras, Portugal estabelece uma outra política agrária na Colônia, a implantação das chamadas Sesmarias, como ficou conhecido a distribuição de terras em sesmos, onde o proprietário teria que pagar a sexta parte de toda a produção à Coroa. Qual foi o significado dessas políticas? Formam-se as pequenas agriculturas ao lado das políticas agrárias das Sesmarias (uma empresa colonial com escravos, um latifúndio) que visa atender os interesses mercantis da Coroa e por outro lado, colonos modestos e livres com pequenas agriculturas, a alternativa era as ocupações das glebas e exploração da terra. Nesse momento que começa a agricultura familiar que conhecemos hoje. O sistema de Sesmaria termina em 1822, se estabelece o chamado Regime de Posses, as pessoas podiam tomar posse desde que cultivassem a gleba. A posse passa a ser um modo legítimo de aquisição de terras. Nesse momento, há uma grande expansão da pequena propriedade independente, uma forma democrática de acesso à terra no Brasil.
A compra de terras
“Uma outra política foi a Lei de Terras, a mais precária de todas. É a mais drástica forma, em termos de que é necessário a compra para se obter terras. A terra passa a ser mercadoria propriamente dita. Isso vem tolir uma melhor distribuição de terras. A partir daí, temos o crescimento da população urbana, começa o ciclo do café, o preço da terra inflacionou. O grande mote da Lei de Terras foi trazer os imigrantes para trabalharem nas terras e que estes e os escravos, agora livres, não tomassem terras. Esse processo aconteceu durante toda a nossa história”, afirmou Bergamasco .
Chegamos em 1964 numa grande efervescência da sociedade civil, toda a luta pelas reformas de base incluía a luta pela reforma agrária num processo de mobilização e de demanda por terra, aquele momento era importante tendo em vista que já tínhamos uma altíssima concentração de propriedade da terra. “Até 1964 quase não tivemos legislação agrária, essa legislação é encontrada na Constituição de 1946, depois reformulada em 1967, incluindo um ponto importante e polêmico na Constituição de 1988 que é a Função Social da Terra (começa em 1946 quando diz que o uso da terra tem que ser condicionado ao bem estar social). Outro ponto foi a Carta de Punta Del Leste que reuniu diversos políticos e acadêmicos para discutir o problema dos países subdesenvolvidos da América Latina. E se chega a conclusão da necessidade de desenvolver a indústria para desenvolver a agricultura. A indústria só poderia ser incentivada se no campo tivéssemos um grande desenvolvimento com poder aquisitivo, portanto, uma reforma agrária, que vinha sendo proposta quando João Goulart assume, e um grandes motivos de sua queda, com o golpe militar, foi por conta da reforma agrária”, afirmou Bergamasco.
Lei de Reforma Agrária
Segundo Bergamasco, o Brasil teve a melhor Lei de Reforma Agrária do mundo, reconhecido em todos os colóquios internacionais, a qual trazia alguns pontos importantes como a definição da área máxima de propriedade de terra adotada na maioria dos países, mas no Brasil não teve isso, pontuou a definição de módulo rural (área mínima para sustentar uma família média) de propriedade familiar. “Ninguém deveria ter mais que seiscentas vezes a área de propriedade familiar. O Estatuto da Terra cria categorias como o minifúndio, o latifúndio, a empresa rural (não pode ser desapropriada porque está produtiva), trazia a preservação dos recursos naturais, e regulava as relações justas de trabalho, todos esses pontos estão no Código Civil. Os indicadores econômicos para diferentes culturas até hoje são os mesmos, tiveram muitas tentativas de governos e acadêmicos para refazer esses índices de produtividade pra mostrar que estavam muito aquém”, afirmou Bergamasco.
Durante o período militar fizeram uso de um instrumento que foi elaborado por uma comissão antes do golpe (no governo João Goulart) e o governo militar sanciona em Lei, se realmente fosse implementado teríamos uma condição melhor de propriedade da terra, mas não foi. “Porque a perspectiva dos militares foi tomar a fronteira, colonizar e não fazer reforma agrária. Foram feitos assentamentos criados nas áreas de fronteira”, afirmou Bergamasco.
No processo democrático do governo Sarney começa os assentamentos. Cria-se um Plano Nacional de Reforma Agrária com um saldo de 876 assentamentos, sendo 515 dentro do Plano Nacional de Reforma Agrária,137 ainda no processo de colonização e 224 estaduais. Em 1995, são 1.626 núcleos, 326 mil famílias em 27 milhões de hectares. Neste momento os movimentos sociais se redefinem, o estado reage e é formado a União Democrática Ruralista (UDR) para lutar contra os assentamentos. Como ex-integrante na comissão que estuda os processos de terras improdutivas, Sônia Bergamasco citou que “nesta época, chegavam os processos assim que entravam no Incra a solicitação de desapropriação da terra. Os técnicos fazem vistorias nas propriedades abandonadas, porque somente se desapropria terra com ordem do presidente da república. Como membros na Comissão, tínhamos três trabalhadores rurais representante dos mesmos e três representantes dos proprietários rurais, um representante do Estado e um representante técnico. Tivemos várias questões difíceis de serem resolvidos, principalmente nos processo que chegavam, porque após reunião chegava um outro processo da mesma propriedade totalmente diferente, ‘maquiada’. Os donos da terra improdutiva chegavam a ‘importar’ gado pra essas propriedades com a intenção de provar a produtividade”, afirmou Bergamasco.
Os últimos anos
No governo Fernando Henrique, estabelece na legislação aquilo que se chama de Rito Sumário, ou seja, num período de 48 horas sem reclamação do proprietário o processo é executado. Na Constituição de 1988 é extinto o Estatuto da Terra, os índices de produtividade continuam os mesmos. Com isso, tínhamos o chamado latifúndio improdutivo e cinco anos depois a Lei Agrária de 1993. “A regulamentação da Carta Constitucional cai no buraco negro por conta dos índices de improdutividade porque o pessoal que estava defendendo a reforma agrária dizia que era necessário que na Carta Constituinte constasse os indicadores de produtividade, uma definição de terra realmente produtiva e lá não se definiu. Foi sendo definida depois e piora muito toda essa condição porque traz os indicadores da utilização da terra e eficiência econômica. As propriedades menores de 200 hectares não podem ser desapropriadas, assim como as propriedades arrendadas. O pagamento feito por títulos da política agrária passa a ser visto de forma diferente, as benfeitorias antes da desapropriação pagas em dinheiro e só a terra em títulos da política agrária que eram negociadas até 20 anos. A reforma agrária não se concretiza no Brasil”, afirmou Bergamasco.
Foi também no período de governo de Fernando Henrique que ocorreu o maior número de assentamentos, mais de 300 mil famílias (nem todas com processo desapropriatório) cria-se o Banco da Terra como regularização fundiária e se consegue pensar o setor da agricultura, trazendo a categoria agricultura familiar. “Alguns problemas emergiram com a camuflagem de quilombolas, assentados, indígenas e outros agricultores familiares desse contexto. No final do mandato estabelece uma lei crucial para os movimentos sociais, a proibição das ocupações de terra, ou seja, terra que for ocupada não pode ser desapropriada durante 2 anos”, destacou Bergamasco.
Lula assentou 614 mil famílias passando uma perspectiva de que não precisamos mais fazer assentamentos, com a ideia de melhorar as condições dos assentados através de políticas públicas como o Programa Mais Alimentos, 30% da Política Nacional de Alimentação Escolar, porque o grande gargalo da agricultura familiar é a comercialização e a necessidade de assistência técnica onde se define como público prioritário a agricultura familiar. A Política Nacional de Agroecologia Orgânica, além da agricultura familiar definida por Lei, agricultura familiar não pode deter área maior que 4 módulos e mão de obra da própria família e que dirige seu estabelecimento. No governo Dilma não houve estímulos como no governo anterior mas continua presente a mesma política.