Jornal Pires Rural – Edição 232 | SÃO PAULO, Setembro de 2019 | Ano XIV
Os desafios da reportagem hoje são, de um lado, a tecnologia jogando junto com todas as possibilidades multimídia, de outro, redações cada vez mais capengas com jornalistas que apuram diante do computador, em vez de ir pra rua sujar o sapato. Qual o lugar da reportagem no jornalismo do século 21?
Na opinião de Leonencio Nossa, repórter especial na sucursal do jornal O Estado de S. Paulo em Brasília, é preciso olhar um pouco o passado e entender o que é a reportagem para se ter uma visão otimista, diante da confluência de crises, pois, não é apenas a crise no mercado jornalístico de esvaziamento de redações, há uma crise de plataforma econômica no mundo. “Lembro quando era estudante de jornalismo já ouvia sobre o fim do jornalismo, o fim do impresso (profecia que se configura). Se você acha que nasceu para ser jornalista, tem que enfrentar essa crise como jornalista. Falo isso com otimismo, não tem outro discurso possível”, destacou.
Leonencio Nossa esteve no seminário “Jornalismo e as configurações do quarto poder”, realizado nas dependências da unidade Sesc da Vila Mariana, SP. Promovido pela revista Cult em parceria com o Sesc, o seminário buscou discutir, o poder da imprensa, seus modelos de gestão, a influência da internet e a contribuição da imprensa como agente formador de consciência política.Há o drama recente do fechamento da editora Abril, demissões de outros veículos mas, “temos que continuar tocando o barco. Observo que nenhum outro momento, tivemos uma situação favorável para produção de grandes reportagens no país”, disse. A grande reportagem surge no início do século XX, com os trabalhos de Euclides da Cunha, foi um produto, uma prática marginalizada dentro da comunicação. Se verificarmos o acervo jornalístico brasileiro produzido nessa área são referências sensacionais. “Que fique bem claro, a reportagem não está atrelada ao impresso., No Brasil, a origem da reportagem está ligada ao Cinema. No início do século XX, no Rio de Janeiro, aquelas pessoas com aquelas câmeras enormes vinham filmar a cidade. O mercado não se limita ao impresso, existem reportagens nos documentários que estão sendo produzidos, tem na produção de peças de teatro, na internet, nem se fala. Então, se olharmos pelo angulo otimista, veremos que há um campo mais extenso que a grande reportagem. O problema do espaço acabou, se você tiver uma matéria hoje, você publica. Comparando a cobertura de imprensa entre o impeachment de Fernando Collor, em 1992, e de Dilma Rousseff, em 2016, vimos uma imprensa mais frágil, ao passo que me 1992 era uma imprensa com mais ‘filtros’ e base, ainda que tivesse aquela linha a favor do impeachment. Agora, se o jornalista não tem escrúpulos, precisa do ‘Coronel’ para proteje-lo nos grandes veículos, o cara da mafiazinha, a favor de algum grupo econômico ou político, temos esse problema da liberdade de expressão, da liberdade de ser jornalista”, relembrou.
Outro problema que persiste é o custo. Como produzir uma reportagem numa redação mais enxuta? Não é possível se manter na ‘aventura’ da reportagem, às vezes é ir ao inferno e voltar. O sentido da aventura é esse. Leonencio aponta, “tem que entrar no ramo sabendo que não se ganha dinheiro. Fazer um livro, por exemplo, não dá dinheiro. Você não tem o reconhecimento. Se você pensar: ‘fiz uma reportagem faz uns 5 anos, qual reconhecimento vou ter?’ O máximo vai ser seus colegas e seus pais lá no Facebook, dizendo ‘show’, ‘parabéns’, é uma área que não dá pra esperar reconhecimento, prêmio então, nem se fale”, avaliou.
Reportagem especial
Na visão de Leonencio não existe a figura do repórter especial, existe a reportagem especial, “se o jornalista entrar nessa linha de repórter especial, ele dança, porque ele se afasta da rua. Não adianta; tá lá na rua, lá no morro, tá no interior, sua matéria prima (para as reportagens) e ainda, não caberá ao jornalista escolher a grande reportagem”, enfatiza.
No contexto de tanta informação, tantas imagens e tantos dados, as pessoas dizem que tudo está escrito entretanto, “a reportagem é a visão do jornalista sobre o mundo e, como ele leva essa visão para outras pessoas. Nesse sentido a reportagem é sempre inédita, ela nesse do jornalista. O que define essa prática, essa tradição, é o repórter saber cultivar e guardar ideias, que serão grandes reportagens, ele frisa aconselhando, “tem que colocar as ideias na cabeça, num arquivo, num armário, ninguém acha quem tem uma grande reportagem. A capacidade do repórter com o tempo ir alimentando essas ideias isso é definidor, é de suma importância. A cabeça de um repórter especial é um banco de aplicação, tem 10 grandes histórias na sua cabeça, e ao longo do tempo vai obtendo algumas informações e cultivando aquilo na cabeça. Eu funciono desse jeito, sempre tenho umas 3 ou 4 grandes ideias e o tempo, definidor de tudo, vai me dando base. Às vezes, a grande reportagem surge da vivencia, no meu caso quando garoto morava em Cariacica, ES. Era morte de prefeito uma atrás de outra, houve uma época que foi uns três de uma vez. Tudo isso ficou na minha cabeça. Depois fui à Brasília, vivi a política e tal, ficava pensando em fazer uma reportagem sobre um prefeito que morreu da minha cidade, também achava que isso não vai ter importância nenhuma. Viajando pelo país, eu pegava uma história de prefeito morto ou vereador, estou dando esse exemplo porque uma história minha se transformou em uma discussão nacional porque é algo que interessa mais pessoas”. Leonencio Nossa foi articulador do material jornalístico produzido pelo jornal Estadão, em 2013, chamado Sangue Político, que ao longo de 17 meses fez o levantamento de homicídios em 14 Tribunais de Justiça de Estado, nos arquivos de CPIs, em acervo de entidades de direitos humanos, em delegacias e cartórios onde mostrou as conexões entre mandantes dos assassinatos e grupos políticos estaduais e nacionais.
Para concluir Leonencio diz; “ter a disciplina para cultivar as doideiras que tem na mente para contar às pessoas isso é fundamental. Assim como dar início a uma história, uma grande dificuldade do jornalista pois, nunca temos elementos suficientes para um início há uma boa história. Quando surge uma ideia na minha cabeça eu abro um arquivo no computador e vou escrevendo, uma hora, algumas daquelas ideias me ajudam. A disciplina e viver o jornalismo sem medo de errar e de se dar mal, porque vai acontecer. Já me perguntaram se não tenho medo do meu jornal quebrar ou o mercado não funcionar mais? Eu falo o que aprendi com meu pai: ‘Eu já quebrei faz tempo. Já passei desse problema'”, finalizou.