Entrevistamos William Bercê, ecológo, formado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Unesp, com experiência em ecologia, biologia e manejo de espécies invasoras. Meliponicultor desde 2014, hoje se dedica a conservação de abelhas, atuando em projetos independentes de manejo e criação de abelhas sem ferrão. O objetivo da entrevista é esclarecer sobre a toxicidade que a espécie Spathodea campanulata disponibiliza para as abelhas causando a sua morte. Trata-se de uma árvore de origem africana que disponibiliza néctar, pólen e mucilagem com substâncias tóxicas, que causa a morte das abelhas. Segundo William, “É muito comum a gente abrir uma flor de Spathodea no chão e encontrar abelhas mortas dentro. Estudos já constataram esse efeito de mortandade tanto para abelha apis como para a abelhas nativas. A toxidade tem o efeito químico na mucilagem e também mecânico sendo pegajoso e prendendo o inseto lá dentro”. Alguns municípios brasileiros têm erradicado a espécie Spathodea campanulata para priorizar a manutenção da biodiversidade e a vida das abelhas.
Pedimos a contribuição de William para aprofundar o assunto sobre as particularidades das abelhas nativas sem ferrão, as mais conhecidas, como vivem, e seus méis. A entrevista traz respostas muito bem explicadas, de forma que nossos leitores possam assimilar o conteúdo trazido por um técnico experiente no manejo e criação de abelhas sem ferrão.
JPR: A terra possui 4,5 bilhões de anos. As abelhas surgiram após o surgimento das plantas com flores há mais de 100 milhões de anos, no Cretáceo. A associação entre as abelhas e as flores, onde as abelhas obtém néctar e pólen como fonte de alimento e contribuem para a polinização e reprodução das plantas, nem sempre essa relação beneficia ambas as espécies. Pode ocorrer a intoxicação das abelhas quando elas coletam recursos tóxicos das flores de espécies exóticas e também das nativas?
William: Primeiro, precisamos diferenciar o que é polinização de visitação floral. A polinização é quando ocorre efetivamente a transferência de pólen, que são os gametas masculinos, para a parte feminina da flor ocorrendo a fecundação. As flores podem oferecer diversos recursos para as abelhas como atrativos, como o néctar, o pólen, a resina, óleos e perfumes – o que atrai as abelhas às flores mas, se elas só coletarem o recurso e não houver transferência de pólen então, é somente uma visitação floral. Tem algumas plantas que são polinizadas por outros tipos de insetos e as abelhas visitam para coletar recurso e vice-versa. Um exemplo disso são as flores do maracujá, que recebem abelhas pequenas que são visitantes florais, como Apis, Jataís e outras que por sua vez coletam o néctar nos nectários mas, por serem pequenas nem tocam a antera que é a parte masculina que fica no centro da flor e que tem o pólen. Já as abelhas mamangavas (Xylocopa spp. e Bombus spp) devido ao tamanho robusto, possuem essa compatibilidade e quando vão coletar o recurso, encostam o tórax na antera e liberam pólen. E, quando vão de flor em flor ela involuntariamente faz essa transferência de pólen. Costumamos pensar que a abelha vai na flor para polinizar, não! Ela vai na flor para coletar recursos fornecidos pelas plantas, involuntariamente ela toca e faz a polinização. Numa característica co-evolutiva entre as plantas e as abelhas. A planta oferece o recurso convidativo, a abelha visita, toca e faz a polinização, no caso das polinizadoras.
Produzir esses recursos atrativos é bastante custoso para as plantas, do ponto de vista energético. Então, quando você levanta esse ponto de benefícios, no caso de um visitante floral, só o inseto se beneficiou do recurso. Entre as plantas existem diferentes estratégias de reprodução e de defesa, algumas das plantas produzem compostos secundários que geralmente estão associados a resistência herbívoria e selecionam ponilizadores para evitarem os “saques” do visitante floral. Então, alguns compostos tóxicos como os fenóis e alcalóides apresentam efeito seletivo de polinizador, inibindo alguns e atraindo outros.
O contato com esses compostos de defesa é o que geralmente leva à intoxicação. Isso ocorre tanto em algumas plantas nativas como em plantas exóticas. O que a gente tem que ter em mente é que uma planta dentro da sua área de ocorrência natural, evoluiu ali, com a comunidade, com a fauna ali presente e o ecossistema então, ela se adaptou e co-evoluiu com interações. Quando há uma introdução de espécie exótica o efeito de incompatibilidades pode intensificar esses problemas de intoxicação. É como se aquela planta fosse uma “peça de outro quebra-cabeça” e foi inserida ali — popularmente falando. Como se a fauna ali presente não teve um histórico, não evoluiu com aquela planta, não geraram relações específicas, podendo sofrer efeitos deletérios.
JPR: Tratando-se das plantas tóxicas, há algumas que podem afetar negativamente as abelhas que as visitam? São muitas as espécies que liberam pólen ou néctar tóxicos para as abelhas?
William: Sim. Algumas podem afetar negativamente as abelhas que a visitam. A toxidade de pólen e néctar é um fenômeno que ocorre em diversos locais ao redor do mundo, porém, ainda pouco compreendido. As hipóteses são principalmente, em torno da questão da especialização de polinizadores, a tentativa de impedir coleta furtiva de pólen e nectar, a prevenção da degradação do néctar e também a adulteração de comportamento de polinização. Tem espécies de muitas famílias que podem causar envenenamento nas abelhas pela toxicidade do pólen, do néctar, secreção de nectários extra florais, seiva ou mucilagem. Mas, felizmente, as plantas que envenenam as abelhas são aquelas que geralmente produzem pouco néctar ou pólen.
A toxidade também pode variar de acordo com a fase da vida da abelha e o tempo que foi coletado o recurso. Nem sempre o efeito da toxidade é agudo, de provocar a morte instantânea, às vezes, pode ser carregado para a colmeia, provocando a redução do tempo de vida das operárias, e a mortandade de larvas.
As espécies mais comumente relacionadas à intoxicação de abelhas são Espatódea (Spathodea campamulata), Neem (Azadirachta indica) e o Barbatimão (Stryphnodendron spp.).
JPR: Alguns municípios brasileiros têm erradicado a espécie Spathodea campanulata, árvore de origem africana que disponibiliza néctar, pólen e mucilagem com substâncias tóxicas, que além de causar a morte de abelhas, observou-se que as flores da S. campanulata apresentam alcaloides tóxicos para as espécies de beija-flores nativos. Essa espécie é de fato prejudicial às abelhas e beija-flores?
William: A Spathodea é uma Bignoneaceae africana, foi introduzida para a finalidade ornamental. Os seus botões florais apresentam grande quantidade de néctar com mucilagem, denominada por diversos autores. É muito comum a gente abrir uma flor de Spathodea no chão e encontrar abelhas mortas dentro. Estudos já constataram esse efeito de mortandade tanto para abelha apis como para a abelhas nativas. A toxidade tem o efeito químico na mucilagem e também mecânico sendo pegajoso e prendendo o inseto lá dentro. Foram realizados alguns bioensaios que mostraram a toxidade alta para mucilagem mas, não houve representação de toxidade significativa para o pólen e para o néctar, sugerindo que há uma ação sinergística dos diferentes compostos nas flores.
Alguns dos estudos conduzidos com espatódeas, que constataram a mortandade de abelhas sugerem que essa defesa química da Spathodea visa impedir que o pólen e o néctar seja furtado pelos insetos antes da abertura das flores, o que impediria ou reduziria a probabilidade da polinização dela por vertebrados – que é o que ocorre na área natural. Acredita-se que essa planta seja polinizada por pequenas aves e por pequenos mamíferos, possivelmente até lêmures. Uma outra opção seria a mesma proteção química não relacionada a ladrões de pólen ou néctar mas sim, a insetos que predam as flores. É um mecanismo dela se defender e garantir mais chance de ser polinizada pelos polarizadores efetivos dela que são vertebrados.
O mais provável é que o néctar não tenha um efeito tóxico para os polarizadores vertebrados. Portanto essa questão do beija-flor provavelmente é um mito porque não há registros de beija-flores mortos próximos a Espatódeas, diferente do que acontece com as abelhas.
JPR: O que deve ser levado em consideração na aprovação de um Plano Diretor de Arborização Urbana, quando o assunto é respeito e fomento à biodiversidade?
William: Na maioria das cidades o principal critério para arborização é a estrutura radicular e como elas podem afetar as calçadas e edificações, ou a estrutura de copa e porte e como pode afetar a rede elétrica. São critérios importantes pensando na infraestrutura das cidade para garantir a manutenção e segurança. Porém pensando em conservar a biodiversidade, seria interessante conciliar alguns outros critérios também, para como: promover a diversidade de espécies usando plantas nativas e valorizando principalmente as plantas da região. Pensar em desenhos de estrutura e conectividade das árvores ao longo da cidade gerando corredores e abrigos para animais, tanto insetos quanto vertebrados. Planejar a disponibilidade de recursos de cada espécie de árvore levando em consideração a oferta de néctar, pólen, óleos, resinase frutos ao longo de diferentes períodos do ano para a fauna. Manejo e poda adequados, que são fatores que acabam comprometendo a saúde e a longevidade das florestas urbanas quando realizados de maneira inadequada
JPR: Não dá para falar em arborização, néctar, pólen, polinização, sem falar de abelhas nativas sem ferrão, desconhecidas pela população. Conte-nos sobre essas abelhas e suas particularidades.
William: Todas as abelhas sociais brasileiras, ou seja, as abelhas que formam colmeia, as nativas do Brasil, são sem ferrão — possui o ferrão atrofiado. No Brasil, são mais de 250 espécies descritas. Abrigamos a maior diversidade desse grupo no mundo, os meliponíneos, que ocorrem na região subtropical e tropical somando mais de 400 espécies. As abelhas sem ferrão são conhecidas como meliponíneos devido a sua característica de armazenar o mel em pequenos potes, deriva da palavra melipona (mel em potes). Diferente da Apis que armazena o mel em favos. A Apis mellifera, a abelha-europeia africanizada apesar de ser a mais conhecida, não é nativa; é uma espécie exótica e invasora. Foi introduzida no Brasil no século XVIII para a produção de cera e mel pelos jesuítas e mais tarde na década de 1960, foi introduzida a genética das africanas para o aumento de produtividade e resistência. Mas as nossas abelhas nativas já estavam aqui muito antes da chegada de Pedro Álvares Cabral e são exímias polinizadoras.
As abelhas sem ferrão tem uma diversidade grande de hábitos de nidificação. Algumas fazem o ninho no solo, outras em oco de árvores, outras com ninhos com estruturas externas análogos a cupinzeiros, com estrutura com própolis, barro e fibras. São super importantes para a polinização tanto nos ecossistemas naturais quanto nos ecossistemas agrícolas, fundamentais para a nossa sobrevivência.
JPR: Há uma preocupação urgente a respeito da mortandade e erradicação das abelhas, de uma forma geral, no mundo. Contextualize a relação da vida ativa das abelhas, o equilíbrio dos ecossistemas e a vida humana.
William: Estamos passando por um declínio global de polinizadores, causado principalmente por impactos antrópicos em ambientes naturais e que vem afetando severamente até mesmo as abelhas criadas por apicultores e meliponicultores. O desmatamento, a monocultura, o uso intensivo de agrotóxicos, as queimadas, a exploração predatória e a introdução de espécies exóticas são as principais ameaças que vem gerando esse cenário. As abelhas são um grupo muito importante entre os polinizadores, porque elas se alimentam de recursos florais e desempenham um papel imprescindível de polinização. Elas dependem das flores para viver. A polinização biótica é a base para a reprodução da maioria das plantas tanto em áreas florestais como em culturas agrícolas. As florestas tropicais tem até 90% das plantas dependente de polinização por animais e dentre eles as abelhas representam quase 70% desse efetivo. Cerca de um terço do que a gente come depende diretamente da polinização por abelha. E, até mesmo as culturas que não dependem diretamente podem ter ganho expressivo com presença de polinizadores. A polinização é uma relação ecológica que é chave para a sucessão vegetal nas florestas e produção agrícola nos campos. É imprescindível para manutenção da vida. Ela sustenta a cadeia alimentar, e é o que garante a floresta em pé e a comida na nossa mesa.
JPR: Quantas espécies de abelhas nativas sem ferrão temos no estado de São Paulo? Quais são as mais conhecidas? Onde vivem e como podemos ajudar para mantê-las sem prejudicar o seu habitat natural?
William: São pelo menos 61 espécies de abelhas sem ferrão no Estado de São Paulo e a mais conhecida certamente é a Jataí. A maior parte das abelhas sem ferrão nidificam em ocos de árvores ou cavidades pré existentes. No caso das cidades, algumas abelhas adaptadas a área urbana como a jataí, a irai, até utilizam tijolos, poste padrão de luz, enfim, outros ocos que elas se adaptaram para colonizar. Mas temos abelhas que fazem ninhos externos com geoprópolis e fibras como as arapuás e as guaxupés, E abelhas que nidificam no solo.
O caminho para a conservação é a conscientização. Sabendo e conhecendo a importância das abelhas fica mais fácil adotar as boas práticas e conservar. A partir do momento que um cidadão conhece e é capaz de identificar uma abelha, ele já sabe que é um inseto que não precisa temer, não precisa matar, não é um mosquito da dengue.
JPR: As abelhas nativas sem ferrão podem ser criadas para a produção de mel? O sabor dos méis produzidos pelas abelhas nativas sem ferrão são diferentes entre si e das demais abelhas com ferrão? Se sim, por que?
William: Sim, elas podem e devem ser criadas e multiplicadas. O nome dessa atividade, a criação das abelhas nativas sem ferrão, é Meliponicultura e o ator é o Meliponicultor. Ela é uma das principais ferramentas de conservação das abelhas sem ferrão, além de ser uma atividade transformadora, com um potencial de educação ambiental indescritível. As pessoas que tem o contato e descobrem as abelhas sem ferrão polinizam as ideias. A interação traz muitos conceitos de ecologia, um olhar sensível do micro e do macro, as pessoas ficam mais atentas as flores, aos detalhes. E, quando as abelhas são bem manejadas, em um ambiente com boa disponibilidade floral, elas brindam com uma produção de mel que pode ser colhida de maneira sustentável sem prejudicar a colmeia.
Cada mel é único e o sabor vai depender da espécie da abelha que produziu, da florada do tempo de maturação, do beneficiamento pós-colheita, entre outros aspectos. Dentro de uma mesma colmeia é possível colher sabores e colorações diferentes, devido a florada. Como tem esse caráter de armazenamento, é possível colher em dezembro um mel que foi armazenado em agosto. Colher em março, um mel que foi armazenado em setembro. E tudo isso influencia no sabor.
Em geral, os méis de abelhas nativas, em relação ao da Apis mellifera, possuem maior teor de umidade, maior acidez, menor dulçor perceptível ao paladar e, por possuir maior teor de umidade são passíveis de fermentação o que traz ainda mais diversidades de aromas e sabores no mel. As propriedades medicinais dos méis de abelhas nativas sem ferrão ainda são pouco estudadas mas, temos alguns resultados bastante expressivos pra méis principalmente o mel de jatai, são estudados para tratamento de glaucoma e catarata e historicamente é usado medicinalmente para tratar doenças respiratórias.
JPR: A população leiga deve temer as abelhas? Como estabelecer uma relação segura com as abelhas?
William: Não. As abelhas não devem ser temidas e sim reconhecidas e respeitadas e conservadas. A grande maioria das abelhas são inofensivas. Uma relação segura e benéfica para ajudar as abelhas consiste em plantar árvores e flores, conservar e restaurar áreas verdes, não usar agrotóxicos, conservar o solo e oferecer abrigos. E, se possível, criar abelhas também. São boas práticas para a conservação das abelhas, ainda que não queira criar efetivamente, ter uma colmeia em casa, pequenas atitudes no dia a dia ajudam a preservar as nossas abelhas.
JPR: Quais espécies de plantas que alimentam as abelhas você orienta para o plantio em quintais?
William: Depende muito do tamanho do quintal e do objetivo da pessoa. Para quem tem espaço eu recomendo árvores frutíferas, porque até de fornecer recursos para as abelhas durante a florada, irão fornecer recursos para as pessoas e para os animais durante a frutificação. Vale muito a pena plantar frutíferas como jabuticaba, pitanga e goiaba. Para quem não tem tanto espaço, tem um pequeno jardim, tem algumas plantas que são bastante atrativas para as abelhas e, que vão garantir uma boa observação. Eu destaco o manjericão, o amor agarradinho, a onze horas, o cosmos, algumas flores pequenas que é muito comum ver abelhas.
JPR: Deseja acrescentar considerações finais ?
William: Não é exagero dizer que dependemos das abelhas para manutenção da vida. São seres com uma função imprescindível nos ecossistemas, mantendo a sucessão vegetal e a produtividade agrícola. As maiores ameaças para elas surgem de impactos antrópicos, portanto, é nossa responsabilidade manter boas práticas para conservação das mesmas. Assim como em uma colmeia cada pequena abelha tem sua função, cada pequena ação nossa, faz toda a diferença.