Jornal Pires Rural – Edição 208 | CAMPINAS, Dezembro de 2018 | Ano XII
Prof. Dr. Eugênio Vilaça Mendes, consultor em saúde pública, participou do Fórum Permanente de Políticas Públicas e Cidadania com a temática: “Pra onde caminha o SUS?” que aconteceu em Campinas (SP), no auditório do Centro de Convenções da UNICAMP com organização do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas – NEPP – Unicamp.
Dr. Eugênio trouxe para o debate questões que tratam da planificação da atenção à saúde, com seus estudos e teses, ele acompanha e fomenta as mudanças que tem por objetivo a organização da Atenção Primária à Saúde (APS), integrada à Atenção Especializada nas Redes (AER) de Atenção à Saúde. Mineiro de Pará de Minas, é formado em Odontologia pela UFMG, tem especialização em planejamento de sistemas de saúde, atualmente é assessor da Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais e consultor do Projeto QualiSus, também autor de vários livros sobre processos de trabalho em unidades de saúde.
Convidado para debater o tema “Os desafios da integração do SUS e o fortalecimento da Atenção Básica”, ao qual ele chama de Atenção Primária à Saúde, Dr. Eugênio, lembrando um de seus livros, de 2001, “Os grandes dilemas do SUS”, citou que o SUS apresenta problemas estruturantes, “os grandes dilemas no aspecto macroeconômico são segmentar o sistema ou universalizar o sistema. Pelo que me foi sugerido vou tratar aqui no âmbito microeconômico, que está boa parte da solução. As evidências internacionais demonstram claramente que os sistemas públicos e universais são mais assertivas e eficientes do que os sistemas segmentados. Temos que ter a consciência de que não interessa para a população brasileira fragilizar o sus. A grande segmentação se dá pela relação entre gastos públicos e privados. Deixar como está, é caminharmos para uma fragilização do SUS. Além do que, surge comendo pelas beiradas, algo muito preocupante, o fenômeno das clínicas populares, que aumenta o gasto privado no bolso, esse aumento de gasto privado é inerentemente iníquo (injusto). Venho pois, como é que vamos resolver o dilema que não é de segmentação mas de fragmentação e integração? A primeira coisas que devemos reconhecer, é que o SUS precisa de uma agenda e precisa gastar melhor o dinheiro que têm”, salientou.
Dr. Eugênio é da opinião que tem temos que acreditar no SUS, porque ele é a melhor solução, “nos falta dizer claramente qual é a agenda de aumento de eficiência do SUS”. Com esse pensamento e diante de seus estudo a proposta para agenda de eficiência do Sistema Único de Saúde (SUS) é integrar o SUS em sistema de Redes de Atenção à Saúde (RAS) e se não fizer isso não terá sustentabilidade. “Porque integrar o SUS em Rede de Atenção? Porque temos um movimento de transições contextuais dos sistemas, que chamo de transição das funções de saúde, que são dados de transições rápidas e profundas sendo: a transição demográfica, transição tecnológica e transição epidemiológica”, relatou.
Há uma crise, no âmbito do modelo de atenção à saúde, manifestada pelo descompasso temporal em adaptar-se oportunamente a essas transições. A primeira transição rápida e profunda é a demográfica, como diz Dr. Eugênio, “a população brasileira está envelhecendo, ao contrário que muita gente diz, envelhecer não cria problemas econômicos no sistema, envelhecer apenas traz mais doenças crônicas. 14% da população brasileira sofre de doenças crônicas”.
A segunda transição é a tecnológica, que se expressa no paradoxo das tecnologias médicas (excesso de tratamentos, excesso de diagnósticos e reversão médica), de acordo com o especialista expressa o seguinte: “os avanços da ciência e tecnologia, tem melhorado as habilidades dos sistema de saúde em diagnosticar e tratar os pacientes”.
A terceira transição que é a epidemiológica. A carga de doenças no Brasil é composta por 13,2 % do grupo das doenças infecciosas e parasitárias, condições maternas, condições perinatais e deficiências nutricionais. 9,5% são causas externas, “a violência assola nossos jovens” disse. Porém 77,3% da carga de doenças são crônicas. “Então, nos temos uma tripla carga de doenças no Brasil, uma agenda não concluída de infecções, desnutrição e problemas de saúde reprodutiva; crescimento das causas externas; forte predominância relativa das doenças crônicas e de seus fatores de riscos, como tabagismo, inatividade física, uso excessivo de álcool e outras drogas e alimentação inadequada. O nosso sistema da saúde tem um fracasso em responder a essa tripla carga. E, essas 3 transições em conjunto, sinalizam uma situação de saúde com participação crescente das condições crônicas em geral e das doenças crônicas em particular e isso determina uma mudança do sistema de saúde, da forma como nós praticamos hoje” observou.
A solução desses problemas implica mudanças que se devem dar, concomitantemente, no modelo de atenção à saúde, no modelo de gestão e no modelo de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
“Um grupo de 60 professores médicos americanos escreveram 8 artigos sobre o novo conceito do cuidado certo que é aquele ofertado para otimizar a saúde e o bem estar por meio da prestação da atenção que é necessária, desejada, clinicamente efetiva, acessível, equitativa e responsável no uso dos recursos. No Brasil fazemos um conceito antagônico, que é o cuidado pobre, que implica a prestação da atenção à saúde que se caracteriza pela sobreutilização ou pela subutilização dos serviços de saúde. Esses dois conceitos, às vezes vivem juntos, como é o caso do parto cesariano, há uma sobreutilização de técnicas médicas e uma subutilização do parto humanizado. Como é nos pacientes terminais de câncer, há uma sobreutilização de tecnologias uteis em detrimento de um cuidado paliativo”, frisou.
Apoiado sobre dados, Dr. Eugênio revelou que no Brasil 30% dos diabéticos estão com diagnósticos, e apenas 30% desse grupo está estabilizado. “Por que isso? Exatamente, porque nós utilizamos pra enfrentar uma situação de saúde do século 21, a clínica da metade do século passado, quando predominavam as doenças infecciosas. Aí nos queremos tratar diabetes, com UPA, com Pronto-socorro. A UPA é a política pública, entre todas, mais desastrosa que esse país já teve, ela mata a atenção primaria, ela mata ao atender pessoas com obesidade mórbida que não podiam ser atendidas nesse tipo de unidade. Então, qual é problema que nós temos e a solução possível?”, perguntou o especialista.
“É uma incoerência entre uma situação de saúde que combina transição demográfica e transição nutricional aceleradas, além de uma tripla carga de doenças, com forte predominância de condições crônicas, e um sistema de saúde fragmentado que opera de forma episódica e reativa e, é voltado principalmente para a atenção às condições agudas e às agudizações das condições crônicas. Se olharmos dados desde 1930 até 2009, percebemos que na década de 30 predominavam as condições agudas, as causas eram de doenças infecciosas e parasitárias. Ocorreu que a situação de saúde mudou com o tempo, até 2009 houve um aumento das mortes ligadas às doenças cardiovasculares, câncer e causas externas, e nós ficamos com o atendimento do mesmo sistema de saúde usado em 1930. A solução está em superarmos esse modelo do sistema fragmentado e fazer o novo conceito. Primeiro, é dar conta da atenção às condições agudas, ser um sistema integrado. Segundo ter uma atenção continua e terceiro uma atenção pró-ativa. Voltado equilibradamente para a atenção às condições agudas e crônicas. Essa é a proposta das Redes de Atenção à Saúde (RAS).
As implicações da adoção da proposta de Redes de Atenção à Saúde (RAS) no SUS, passa pela transição dos sistemas de atenção à saúde, ou seja, o sistema fragmentado é organizado por componentes isolados enquanto a Redes de Atenção à Saúde é organizada por uma atenção contínua. O sistema fragmentado organizado por níveis hierárquicos, a rede é organizada por uma rede poliárquica, “pra dar conta do câncer de mama, é tão importante o trabalho do cirurgião no hospital quanto da agente que vai na casa, porque se o conjunto não atua em rede, não vai ter resultado”, comentou. Rede é orientada para a atenção a condições crônicas e agudas, ela não se volta para o individual, ela é voltada para uma população cadastrada, vinculada a uma equipe de atenção básica a saúde e organizada socialmente em famílias. É atenção integrada: promoção, prevenção, cura, reabilitação e avaliação. Tem a ênfase no cuidado interdisciplinar, condição crônica é fundamental a presença do médico mas, é preciso além do médico, um trabalho, multiprofissional interdisciplinar. A gestão da saúde deixa de ser de oferta e passa a ser da população, é planejar a partir da atenção primaria a saúde, pois é aquela que conhece as pessoas por nome e endereço, as identifica e as estratifica por riscos e controla a partir da estratificação de riscos se aquela pessoa precisa de um especialista. Nada é feito sem a participação da equipe de atenção primaria, isso requer redes coordenadas pela atenção primaria a saúde. O pagamento é por valor gerado pela população, tirando os incentivos de pagamentos por consequência de doenças.
A operacionalização das redes de atenção à saúde
Os elementos das Redes de Atenção à Saúde são 3, a população, os modelos de atenção à saúde e a estrutura operacional. A população compreende a área geográfica, que fica sob responsabilidade de uma RAS, ela que vai definir o encaminhamento ambulatorial ou hospitalar. Para que a RAS exista é preciso organizar alguns sistemas de apoio como o diagnóstico e o terapêutico, de assistência farmacêutica, a teleassistência e sistemas de informação a saúde e também os sistemas logísticos que são transporte em saúde, registro eletrônico em saúde e sistema de acesso regulado.
Outro elemento das redes é o modelos de atenção à saúde aos eventos agudos e atenção às condições crônicas. “Modelos de atenção aos eventos agudos é a mistura de duas coisas, as condições agudas, como uma doença infecciosa, mais as condições crônicas agudizadas, que é um evento sentinela que levou ao manejo da condição aguda. Diante disso podemos trabalhar com um sistema que responda episodicamente, que tenha ações reativas que também esteja integrada, deve-se ter uma rede que responda a urgências e emergências, ela pode ser composta como uma UPA ou Pronto-socorro de hospital”, citou como exemplo Dr. Eugênio. As condições crônicas são aquelas que exigem uma resposta social contínua, pró-ativa e integrada do sistema. “Condições crônicas é diferente de doença crônica. Todas as doenças crônica são condições crônicas mas, tem uma série de outras condições que não são doenças crônicas. Por exemplo, as doenças transmissíveis de curso longo. Eu tenho que atender uma pessoa com tuberculose um tempo grande. HIV/AIDS transformou numa doença crônica para dar atendimento pro resto da vida. O ciclo de vida são condições crônicas, as doenças do cardio, as doenças de transtorno mentais tão agudizadas compõe o universo das doenças crônicas” salientou.
Por fim a estrutura operacional, formada pelos pontos de atenção das redes e pelas ligações materiais e imateriais que integram esses diferentes serviços. Assim, há cinco componentes que fazem parte da estrutura operacional: centro de comunicação, pontos de atenção à saúde secundários e terciários, sistemas de apoio, sistemas logísticos e sistemas de governança.
Os papéis da Atenção Primária à Saúde (APS)
“As evidências sobre as Redes de Atenção à Saúde é que melhoram os resultados sanitários nas condições crônicas, diminuem as referências a especialistas e a hospitais, aumentam a eficiência dos sistemas de atenção à saúde, aumentam a satisfação das pessoas usuárias. Para implantar as redes é preciso fazer uma revolução, não tem outro jeito”, afirmou.
Os papéis da APS nas Redes de Atenção à Saúde são instituir e manter a base populacional das Redes de Atenção à Saúde, resolver a grande maioria dos problemas de saúde e coordenar os fluxos e contrafluxos de pessoas, produtos e informações nas r Redes de Atenção à Saúde. Os atributos da APS são atributos essenciais primeiro contacto, longitudinalidade, integralidade e coordenação somado aos atributos derivados da focalização da família, orientação comunitária e da competência cultural. “A partir dos estudos de demanda de APS, fiquei meio estupefato diante da complexidade pois, eles mostram que há pelo menos 10 tipos de complexidade da estrutura na APS; demanda por pessoas hiperutilizadora, poucas pessoas consomem grande parte da agenda dos médicos. Demandas administrativas, 35% do tempo do médico é gasto com preenchimento de papeis, médico não tolera papel, é inutil. Demanda por atenção preventiva, demanda por atenção domiciliar, demanda por autocuidado apoiado”, enumerou.
Segundo Dr. Eugênio, um ponto muito importante para implantação de rede, é mudar os processos das unidades, “se isso não ocorrer não adiantará nada, a cognição só não vai resolver, tem que entrar mapear e mudar a organização de serviços de atenção primária à saúde. No SUS, em média, em 2015, houve duas consultas médicas na APS para uma na atenção médica especializada, e diante desse número, ainda estão querendo mais especialistas e mais consultas”.
Exemplos práticos
Finalizando sua palestra, Dr. Eugênio citou sua experiência no estado de Minas Gerais e do Paraná. “Aplicamos uma metodologia da construção social da APS em Santo Antônio do Monte, Minas Gerais, com modelo de melhoria, gerenciamento de processos e um processo educacional tutorial. Fizemos uma avaliação dessa atenção primária à saúde, em 2014. O detalhe é que 30% da população dessa cidade tem plano médico da Unimed, mas está todo mundo no SUS, porque o SUS é melhor que o convênio particular. Os dados obtidos foram que as internações por doenças do aparelho circulatório no município por insuficiência cardíaca em 2012 era 22,4%, em 2013 ficou em 12,8%, sendo o ano de implantação da metodologia. Na avaliação de 2014, o número de internação caiu para 5,5,%, note que foi uma queda em apenas um ano. Se a gente melhorar a questão primaria e fazer melhor as especializadas resolve o SUS e sobra consultas, como se faz isso? Trabalhando na organização da questão primaria junto com a questão especializada”, orientou. “Um outro exemplo de nosso trabalho é através da visita dos agentes da saúde da família estratificando os hipertensos em baixo risco, de médio risco, alto risco e muito alto risco. Vão as consultas com os médicos especialistas só os hipertensos de alto risco e muito alto risco que fica em torno de 20 a 30%. Os demais, 75% dos casos, passam por uma atenção contínua com um plano de cuidado onde é atendido por enfermeiro, atendimento ao pé diabético, fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo, cardiologista, endocrinologista, angiologista, oftalmologista, nefrologista, assistente social e por exames complementares. Essa equipe trabalha com um plano de cuidado interdisciplinar, que é devolvido na APS, é um trabalho em conjunto. O médico da família, o médico especialista acompanha pelo WhatsApp. Todo esse sistema de rede foi feito com mesmo dinheiro que já gasto pelo SUS. É isso que eu tinha pra falar”, finalizou Dr. Eugênio Vilaça Mendes.