Skip to content
Jornal Pires Rural

Jornal Pires Rural

  • Início
    • Quem Somos
    • Política de privacidade
    • Contato
  • Comunidades Rurais
  • Notícias
    • Agricultura
    • Cotidiano
    • Educação
    • Cultura
    • Saúde e Clima
    • Revista e Podcast
  • Rádio Pires Rural
  • Rural Vídeos
  • Toggle search form
  • Revista Memória e Sociedade – História Oral e Memória Social Publicações
  • O livro-reportagem do Jornal Pires Rural 2005-2020 Publicações
  • A vida no Bairro dos Pires no relato da família Jürgensen Publicações

A tradição centenária de pedir chuva a Deus: Procissão bairro Correias ao bairro Piraporinha 

Posted on julho 10, 2025julho 10, 2025 By Adriana Fonsaca Nenhum comentário em A tradição centenária de pedir chuva a Deus: Procissão bairro Correias ao bairro Piraporinha 

A tradicional procissão centenária para pedir chuva que sai da Capela Santa Cruz, bairro Correias, Engenheiro Coelho (SP) e percorre dezoito quilômetros até a Capela Bom Jesus, bairro Piraporinha, Conchal (SP), realizada todo primeiro sábado do mês de setembro. 

Para a matéria, trazemos os depoimentos de Maria Pereira, Laurinda Pereira Bombonato, José Carlos Bombonato, Maria Angela de Oliveira Pereira, Eva Maria Boer Batista, Rita de Cássia Batista Moraes e Karina Luck. 

Atualmente, a procissão acontece num outro formato de acolhimento e estrutura de apoio aos fiéis. A coordenação hoje, assumida por um grupo de mulheres voluntárias, é uma inovação depois de um século de realização da procissão – gerações estas que residiriam na comunidade dos Correias e que se empenham em manter a tradição através do exercício da fé. 

Capela Santa Cruz, bairro Correias, Engenheiro Coelho (SP) ponto de partida da procissão (Foto:Arquivo Pessoal)

Rita faz parte da coordenação da procissão, ela afirma que já tentaram quantificar há quantos anos existe a tradição, mas ainda não foi possível. “Meu avô Joaquim Mariano era de 1907 e participou dessa procissão – os fundadores já fizeram sua páscoa. Tentamos quantificar a data do início, mas não conseguimos. Nós (família) morávamos no sítio Caveiras, bairro Pereirinha, Engenheiro Coelho – hoje, sítio São Pedro. A comunidade que a gente pertencia era a Capela Santa Cruz que ficava lá do outro lado, então, a gente atravessava pelo caminho por dentro dos sítios vizinhos pra ir participar das missas e do terço. Meus pais sempre foram festeiros – eles faziam parte da comissão das festividades que ajudou construir a ‘nova’ Capela de Santa Cruz e o barracão, então, a minha infância foi lá. Minha mãe Eva Boer é filha da Olívia Neves e Nercirio (Dinho) Boer, donos de uma das vendas do bairro da Parada, Artur Nogueira (SP). Meu pai Pedro Batista (Mariano) é filho da vó Tonica – Antonia Franco Guimarães e Joaquim Mariano, os pais moravam em casinha de barro. A gente (filhos) nasceu e cresceu ali, mas quem tem mais histórias com a comunidade são os meus pais que ainda mantém o sítio que era do meu avô”, Rita detalhou. 

A mãe de Rita, Eva Boer recorda alguns relatos da vida na comunidade. “A venda foi vendida quando a minha família saiu da Parada, eu tinha 11 anos. O sítio do meu avô era perto onde meu marido morava, fomos morar lá. Nos conhecemos ali. Nos encontramos num parque de diversões na cidade (risos). Eu tinha 14 anos e ele 18 anos. Eu comecei estudar e completei o primário, mas comecei namorar, meu pai não deixou mais (estudar) – fui na roça. No meu tempo, lá (nos Correias) não tinha missa. Tinha uma capelinha simples com um coreto. Da procissão pra fazer chover, eu não participava – só fui um ano quando solteira com as amigas, Angela Pereira, Odila Boer e Maria Lúcia de Moraes. Aquele tempo, a procissão saía, passava  pela capelinha de Nossa Senhora Imaculada Conceição e cortava caminho dentro da fazenda, seguia pelo pasto e saia lá no (bairro) Taperão, na capela São Benedito. Toda semana tinha reza do terço (na comunidade) então, era anunciado a procissão. A Ana que organizava, morava perto da capelinha Nossa Senhora Imaculada Conceição. À tarde, depois da chegada da procissão, ela servia biscoito de polvilho com café, chá. Depois que ela faleceu, a Conceição, mãe do Noé, seguiu a tradição de fazer esse chá da tarde lá no barracão da capela. A quantidade de pessoas na procissão não aumentava. Eu acho que hoje tem mais gente que vai na procissão do que aquele tempo atrás. Teve uma época que a procissão chegou a ter no máximo dez pessoas”, contou Eva. 

A procissão passa pela capela São Benedito, no bairro Taperão; “A gente entra e reza” (Foto:Arquivo Pessoal)

Rita traz as suas lembranças da procissão: “A procissão passa do outro lado do sítio do meu pai, a gente, em casa escutava os rojões: (e já sabia) o pessoal está indo para a Piraporinha rezar pra chover. Por muito tempo eu não participei. Depois, eu participei com uns 10 anos de idade, na época que se levava o andor decorado. Mas era muito sofrido. Chegando lá (Piraporinha), a gente descansava. Levávamos lanches, (os fiéis) levavam marmitas de comida. Eu me lembro que levei bolinho de carne moída que a minha mãe fez pra gente; porque íamos e voltávamos a pé. A hora da volta era muito cansativo. E não tínhamos nenhum preparo (físico). Nós não tínhamos tênis, meia; eu nem me lembro o que eu tinha nos pés – era uma outra realidade. Os sitiantes sabiam que a procissão ia passar e ofereciam a água na beira da estrada. E, quando a gente chegava ali nos Correias, éramos recebidos com biscoito de polvilho preparados pela dona Conceição, assados na fornalha. Me dá água na boca ao lembrar (fica emocionada) – é uma lembrança muito forte”, revelou Rita. 

Eva considera o bairro dos Correias um ponto importante para as procissões devido à expressão de fé do povo. “Ali, principalmente os mais antigos, era um povo muito fervoroso, que tinham muita fé. Tinha um coral só de vozes que os homens cantavam quando tinha a missa na festa da Santa Cruz”, contou Eva.  

Ela ainda destaca que nos Correias tinha a tradição do terço de 25 de março, a solenidade da Anunciação do Senhor, rezado ao meio-dia. O dia em que Deus envia seu mensageiro à casa da Virgem Maria para anunciar uma boa notícia, a missão de ser a Mãe do Filho de Deus: Devoção das 100 Ave Marias. Maria como exemplo de humildade, para aqueles que no mês de março, se associam ao seu ‘Sim, humilhando-se na sua presença, ajoelhando-se 100 vezes, rezando 100 Ave Marias e persignando-se 100 vezes’. Repetir 100 vezes seguidas dizendo sempre: “100 vezes fiz o sinal da cruz; e 100 vezes me ajoelhei; e 100 vezes a Ave Maria eu rezei”. 

“Era um povo que fazia promessa. Quando recebia a graça ou ia para Aparecida (SP) ou pagava lá mesmo a promessa de rezar um terço, ou rezar uma missa, fazer uma caminhada. Eles traziam velas, flores que eram deixados num cômodo no fundo da Capela Santa Cruz – era tudo guardado lá. O destino que se dava a essas coisas, depois era queimado. Quem fazia isso era quem tomava conta da igreja na época, a Madalena do Quinzinho Cardoso”, contou Eva.    

A frente da Capela Santa Cruz (Foto:Arquivo Pessoal)
Interior da Capela Santa Cruz (Foto:Arquivo Pessoal)

Banhar o santo sempre foi a tradição para pedir chuva no bairro dos Correias. Mas o ritual não acontecia só no dia da procissão. “Se tivesse precisando de chuva, reunia as famílias pra rezar e dar o banho no santo, ou senão, trocava de casa em casa o santo e rezava o terço”, afirmou Eva. 

No encontro que tivemos para a conversa e relatos sobre a vida em comunidade no bairro Correias com Laurinda, José Carlos, Maria e Maria Angela e Rita, podemos resgatar o que permaneceu para eles, mesmo depois de migrarem para a vida urbana ao residir em Artur Nogueira. 

Angela Pereira, Alzira Mandaio, Rita de Cassia, Maria Pereira, Lindaura e José Bombonato (Foto:Jornal Pires Rural)

Laurinda conta sobre o bairro Correias: “Morei lá desde que eu nasci. A gente morava uns 2 quilômetros da Capela Santa Cruz, indo pro (bairro) Mato Dentro”. Ela é uma dos sete filhos de José Napoleão Pereira Filho e Francisca Alves Zadorno.  “O meu pai – (se fosse vivo) estaria hoje com 115 anos -, quando ele era criança, ia nessa procissão. Eu fui muito nessa procissão quando era moça”.

Angela, cunhada de Laurinda, fazia parte da mesma comunidade: “Eu era solteira, morava ali. A gente ia pela estrada no Taperão e esperava a procissão lá e, depois acompanhava. Ia e voltava. Levava um baldinho de comida. A procissão sempre saia às 8h, soltava os rojões, de lá de casa a gente ouvia e já subia a estrada pra encontrar. Chegava às 11h no Piraporinha”, contou. 

Laurinda ajudou muito carregar o andor pesado de madeira maciça: “Aquele tempo levava dois andores pesados de madeira grossa, hoje não leva mais não. Era enfeitado por aqueles que iam na procissão. Na ida era bonito, mas na volta era triste, porque ninguém queria mais carregar o andor”, lamentou.  

Eu pergunto à Laurinda: E chovia mesmo? 

Laurinda: “Sim! Ah! Era bom”. 

Maria Angela traz outros detalhes do caminho: “Tinha as dificuldades de escorregar nas folhas de cana-de-açúcar no caminho. A procissão parava durante a caminhada no sítio do Mantovani na capelinha de São Bento – a construção foi uma promessa pra proteger das cobras”. 

Sr Matheus Mantovani (in memorian) primeiro a direita: “Na capelinha de São Bento – a construção foi uma promessa pra proteger das cobra – paramos para rezar pelas almas” (Foto:Arquivo Pessoal)

Laurinda volta a descrever a sua experiência na chegada no (bairro) Piraporinha e o retorno: “A gente rezava e descia na beira do rio pra almoçar. Na volta, o pessoal vinha cansando. Sabe o que a gente fazia? Entrava no meio do braço do andor: duas pessoas na frente e duas atrás e segurava ele – porque ninguém queria pegar mais. A gente chegava de volta nos Correias às 16h”. 

Maria Angela ameniza o sofrimento da penitência: “A gente saia com o sol de rachar e quando voltava, voltava debaixo de chuva. Era chuva de encharcar as roupas e não fazia mal pra ninguém. Quando começava chover a gente agradecia. Eu fui um ano, não sei se a Rita lembra? No ano anterior você me pediu pra rezar o terço. No segundo ano, tava muito seco, você lembra? Muita seca. Quando nós começamos rezar o terço, começou chover, uma chuva maravilhosa”. 

Perguntei para Maria Angela: Qual é o sentimento quando a chuva cai? 

Ela reponde: “É de gratidão a Deus. Eu falo assim: seja do jeito que for, a fé da gente, que a gente tem, ela move montanha. Se faz na intenção de que Deus vai agir, ele vai agir. Quando eu vi aquilo me emocionei. Eu estava terminando o terço – a Rita tinha pedido pra eu rezar – naquele dia eu fui amparada por outra pessoa, eu quase não estava nem andando mais – com um problema de saúde, com joelhos e pernas todos danados, por assim dizer. Aquele dia pra mim – eu vou falar pra você – mexeu comigo. É uma coisa muito bonita, sabe? Não tem preço. É só gratidão. Aquele sol quente que tava e aquela hora caiu aquela chuva! Eu entendi que Deus estava ali falando pra nós: ‘Faz que é isso mesmo. Continua. Eu estou aqui’. Eu era solteira quando comecei a ir e fui por muito tempo – acho que por mais de 40 anos”.

Pergunto para Maria Angela: O que a senhora acompanhou de transformação na procissão durante todo esse tempo de caminhada? 

Maria Angela: “Eu acho que aumentou bastante gente na caminhada e a fé do povo. A gente via que as coisas eram diferentes. Cresceu a procissão, cresceu a oração”. 

Maria intervém e diz: “O Mané Cardoso do Mato Dentro me chamava pra ajudar cantar. A Ana do Prado fazia os pães e os biscoitos pra turma, quando voltava estava com a mesa pronta”. 

As mudanças ocorridas não foram poucas, desde o surgimento de uma coordenação, a mudança da data, a estrutura oferecida como apoio, o almoço servido na chegada, o conforto do transporte gratuito para os fiéis na volta; foi organizado gradualmente.

A procissão segue e a Sra Maria Pereira vai segurando a Cruz (Foto:Arquivo Pessoal)

“Quando eu entrei (a procissão) era no segundo sábado de setembro e estava coincidindo com a festa de Santa Cruz. A gente voltava cansados da procissão e tinha que ajudar na festa que precisava de mão de obra; a gente mudou a data para o primeiro sábado de setembro. A Nice Boro foi organizadora da última festa da Santa Cruz, no bairro dos Correias, uma festa de arromba, maravilhosa. Eu trabalhei na barraca de pesca com o meu filho pequeno, foi maravilhoso. O que aconteceu? A irresponsabilidade de um jovem sem habilitação causou a morte de um pai de família que trabalhou o dia inteiro na festa ao meu lado. Não teve mais festa na comunidade, aconteceu essa fatalidade numa estrada de terra. E, não teve mais a romaria que foi maravilhosa. A festa foi linda e com muito resultado porque fazia tempo que não tinha festa lá. Teve essa fatalidade e nunca mais teve festa lá”, lamentou Rita. 

As comunidades rurais tem sofrido com o esvaziamento de moradores pela dificuldade da sucessão dos filhos na agricultura familiar e o falecimento dos moradores mais idosos. Portanto, temos comunidades esvaziadas, somando também a compra e arrendamento da indústria canavieira nas localidades. 

Rita cita o esvaziamento de fiéis na procissão. “Como eu te falei: por um tempo, a procissão não tinha mais ninguém participando, estava ficando difícil. E não sei por que, a Vanderli Martins Luck quiz reativar isso. Talvez porque ela sempre foi catequista. As meninas dela, Karina e Mayara ainda eram pequenas na época e hoje são as organizadoras (da procissão) comigo. A gente começou a participar, íamos e voltávamos todos arrebentados porque é muito cansativo. É o sol. É o calor. E sem preparo nenhum. Na fé. A Vanderli adoeceu, ela teve um câncer de mama. Mesmo fazendo o tratamento, ela foi muitas vezes com a gente, de lencinho na cabeça. Passou um tempo, ela faleceu – um mês antes da procissão. Ficou muito marcado pra gente, foi muito triste. Aí, a mãe dela, a senhora Laurita  Moraes Martins assumiu a coordenação no lugar da filha. Passou alguns anos, a senhora Laurita faleceu. Eu falei para, as netas, Karina Luck e Mayra Martins Capatto: enquanto nós estivermos vivas essa procissão não vai morrer porque nós vamos assumir – assumimos juntamente com a Nice Boro”. 

Karina Luck, neta de Laurita, filha de Vanderli, relata o seu vínculo familiar com a comunidade Santa Cruz e descreve detalhes do papel de sua avó e sua mãe na coordenação da procissão. E atualiza com a sua participação na sucessão para levar adiante a tradição. 

“Segundo a minha avó, Ana Conceição de Moraes Martins, a minha bisavó, Benedita Napoleão de Moraes, já fazia essa procissão porque todos moravam na área rural e, era muito seco em setembro e eles precisavam da chuva para as plantações. A minha bisavó fez, quando ela não podia mais, minha avó começou se dedicar. A minha mãe, Vanderli Antonia Martins Luck (in memorian), teve uma época que ela encabeçou de continuar, inclusive, quando eu tinha uns nove anos de idade eu fui, a primeira vez, com ela a pé. Eu me lembro, era tudo muito pesado porque tinha que levar mochila com água, comida, frutas e caminhar a pé, com aquele sol muito quente. E, pra voltar, eu me lembro que quase não consegui subir a subidinha final – uma tia que chama Hilda e minha mãe me pegaram em cada braço pra eu conseguir chegar. Fez muitas bolhas nos meus pés. Eu falei: eu não quero mais ir! E, depois disso a minha mãe ficou doente, teve câncer. A minha avó Laurita Moraes Martins (in memorian) começou ajudar também. Quando eu estava adolescente, minha mãe já tinha falecido, comecei participar algumas vezes, mas só indo”, contou. 

A família de Karina sempre esteve presente de alguma forma na tradição da comunidade. “O meu avô, Joaquim Martins, começou fornecer o lanche: o pão com mortadela e refrigerante pra quem chegava lá. Aí, a minha avó pediu pra Nice Boro e a Rita de Cássia Moraes, ajudar pra não ficar pesado. Uma se encarregava de convidar as pessoas, outra de rezar o terço e os cantos pra animar e buscar uma forma, porque as pessoas não queriam mais ir e voltar. Então foi decidido: vamos e depois a gente consegue um transporte – a Rita ficou responsável pela parte do transporte. Minha prima Maiara dava um lanche na saída. Mas, até então, eu não estava no meio porque quando eu fazia faculdade não conseguia participar”, disse Karina.

Karina Luck quando criança e sua mãe Vanderli Antonia Martins Luck (in memorian) (Foto:Arquivo Pessoal)
A tradicional procissão percorre dezoito quilômetros por estradas de terra até o bairro Piraporinha, Conchal (SP) (Foto:Arquivo Pessoal)

Rita revela o sentido para o papel que desempenha junto a coordenação da procissão: “Eu falo que eu tenho um chamado lá pela comunidade da Santa Cruz, porque é onde eu nasci, cresci; onde, com os meus pais, a gente ia pra missa e para o terço. A escola onde eu estudei era ali do lado. É a festa que a gente ia. Eu não me lembro de ir em outra festa quando criança. A gente se lembra das pessoas, tantas que já passaram por lá, como o grupo de jovens que a gente tinha. Eu falo que eu não posso deixar que aquela comunidade, que aquilo lá, morra. E, a gente vê que é o que está acontecendo, porque tem as missas e vai um número bem reduzido de pessoas. Isso é triste, porque a gente vê algo que a gente lutou morrendo”. 

Karina não podia participar ativamente da procissão por causa do rumo que a sua vida tomou, mas ela ajustou esse rumo a medida que percebeu que o sentido que a sua vida precisava estava lá, na procissão. “Eu comecei trabalhar, a vida ficou corrida. Até que um dia eu falei: acho que eu vou tomar a frente (da procissão) também. Tinha uma senhora, lá da comunidade Piraporinha, que fazia e doava o almoço – arroz, feijão, macarrão com carne moída, carne com batata e salada. Por isso, as pessoas se animaram pra ir, porque tinha o almoço e não precisava levar muitas coisas. Só que ela faleceu e ficou sem o almoço. A participação era um grupo de 15, 20 pessoas. Eu pensei assim: já que o meu avô dá o dinheiro pra comprar o lanche, eu faço o almoço, o que faltar eu entero – as minhas tias Luciara e Hilda coziam o almoço”, contou.

Na pandemia a procissão foi interrompida. Quando foi retomada aconteceu o crescimento do número de participantes. Karina acredita que o motivo para tal crescimento vai além da fé das pessoas: “Eu acredito que é a fé das pessoas. Mas esse lance de ter o almoço comunitário, a tradição, a confraternização do pessoal do sítio, que nem se vê durante o ano, atrai as pessoas. Os idosos que não aguentam mais caminhar, eles vão lá na hora do almoço pra confraternizar – eu aproveito pra levar o meu avô. Eu que sou de lá, não vejo ninguém (durante o ano) porque eu estou morando em Americana (SP), mas nesse dia, eu encontro as pessoas que a minha mãe conviveu. Eles perguntam da minha mãe, dos meus antepassados e me contam: ‘A sua avó que fazia isso’. Eu me sinto com essa missão de não deixar parar. Essa fé, que setembro é mês seco, a gente vai e vai chover – eu não quero que isso se perca. Eu levo minha filha de um ano e cinco meses e todo mundo a conhece, porque todos me viram grávida – ela nasceu justo em setembro. Eu quero que ela veja tudo isso porque um dia, quando eu não estiver mais aqui, eu quero que ela continue e entenda a importância dessa tradição da nossa família”, afirmou. 

Perguntei à Karina: Você foi percebendo que os fiéis mais novos foram se juntando na procissão? 

“Sim. Tem gente que vai por curiosidade e gosta de andar, faz caminhada mas, não volta no próximo ano. Volta no próximo ano quem tem fé; quem tem uma penitencia a cumprir; quem faz um propósito. Porque é sofrido. É calor. Às vezes, quando a pessoa não aguenta, sobe um pouquinho no carro de apoio que foi providenciado depois da pandemia”, respondeu. 

Replico uma nova pergunta à Karina: Isso quer dizer que a equipe de voluntários foi ampliada? 

“Isso. Tem gente que faz outras promessas. Um moço me falou da sua promessa: caso ele voltasse andar, ele levaria água todo ano – ele tem levado a água e, isso vai gerando outros desdobramentos. Os mais jovens iam chegando pra ajudar ou porque conhecem a minha tia e cada um faz a sua própria intenção. Hoje, a média de idade (dos fiéis) já caiu para 40 anos, porque os mais velhos não aguentam mais”, descreveu.

Outra vez, sem embargo indaguei Karina: Diante da sua vivência de fé, como você entende a relação entre o caminhar e a fé para os mais jovens? 

“Eu acho que é um momento de parar a nossa correria do dia a dia – eu me sinto assim. Nesse dia, eu paro pra fazer uma penitência e pra ter mais fé. Porque no dia a dia a gente tem fé, frequenta, mas não é a mesma coisa: hoje (dia da procissão) eu vou me dedicar a isso. Me dedicar às pessoas, a fazer o bem, conversar, confraternizar, rezar, a gente vai rezando e cantando – eu não paro pra fazer isso ao longo do meu ano. Eu vejo que as pessoas também tem esse motivo. É um propósito de vida. Esse dia nós vamos fazer isso: penitência, pedir a Deus e agradecer – muita gente vai pra agradecer. O ano passado teve uma senhora que ela não conseguia andar e ficava sempre pra trás – a gente sempre espera. A gente não estava entendendo por que. Ela fez uma promessa: tinha que operar o tendão e se ela conseguisse chegar até no final, ela não ia precisar operar. Pois essa mulher foi o caminho inteiro, a filha apoiou e ela chegou andando. É muito bonito de ver a emoção. É isso o que me faz continuar”, respondeu. 

Grupo de fiéis, antes da pandemia da Covid, era bem menor… (Foto:Arquivo Pessoal)
…quando foi retomada, cresceu o número de participantes rumo a Capela Bom Jesus, bairro Piraporinha
(Foto:Arquivo Pessoal)

O itinerário e os detalhes da procissão é Rita quem explica: “A gente leva a Cruz na frente e logo atrás as imagem de Nossa Senhora Aparecida e São José. Para a procissão, eu sou encarregada do terço e dos cantos da época das Missões – aquela Missão que aconteceu na década de 1980, quando os missionários vieram para as comunidades rurais e instalou a Cruz ao lado das capelas. Eles trouxeram um livro chamado ‘Fé e Vida’ com os cânticos das missões. Há dois anos, o padre Reynaldo está vindo dar a benção para os romeiros e desce com a gente até o córrego — logo atrás da capela Santa Cruz —, alguém desce, pega a água e, ele abençoa essa água e nós lavamos os pés do santo no córrego. O padre nos abençoa e a gente segue. Logo ali, depois da capela, tem algumas capelinhas nas chácaras e eles pedem que passemos por lá. Então, pra gente não atrapalhar o nosso percurso — já estamos rezando ou cantando —, a gente passa com os santos e a Cruz, fazendo uma simbologia ali nas capelinhas. 

Conforme segue a procissão, vamos soltando os rojões, porque tem pessoas nos sítios, nos bairros pra frente que vão esperar a gente. Quando chega na capela São Benedito, no (bairro) Taperão, a gente entra e reza, descansa,  desfrutamos do café oferecido pela comunidade com a Izildinha Rosa. Tiramos uma foto todos juntos. Antes, a gente atravessava a pista ali, agora não pode mais por medidas de segurança. Então, a gente sobe pela contramão, paralelo à rodovia sentido ao pontilhão (que também é contramão pra gente) e saímos do lado da barraca do suco. Seguimos pela estrada de chão sentido bairro Piraporinha, capela do Nosso Senhor Bom Jesus e São Sebastião.

Enquanto a gente está rezando e cantando, passamos no sítio do falecido senhor Mateus Mantovani, um romeiro que participava com a gente. O pai dele fez essa promessa de construir a capela para que as cobras fossem embora do seu sítio. E elas foram! Na pequena capela, bem antiga com um altarzinho, a gente reza por todas as almas das pessoas que já passaram pela nossa procissão – acendemos uma vela e rezamos um terço. Nesse momento, a chegada está mais próxima e já estamos sentindo o cheiro do almoço (risos).

Ao chegar na capela Nosso Senhor Bom Jesus, todos entram cantando. Fazemos alguns agradecimentos ali e o convite para o almoço no salão – antes de sair da capela, uma oração. Depois do almoço entramos todos na capela e rezamos um terço. Quando a gente reza um terço, a gente termina agradecendo os organizadores, a participação, fala um pouco da tradição da procissão e que fica marcado para o primeiro sábado de setembro do próximo ano.

Não espere ser convidado, pois é data definida, chova ou faça sol, acontece a procissão. Neste momento, convidamos todos a olhar para a direita e para a esquerda para agradecer: ‘Obrigado por você estar aqui’. Hoje a volta é de ônibus. Mas já voltamos em cima de caminhão de laranja, em camionetes. Eu digo: nós vamos. Como a gente vai voltar, Deus providencia”, afirmou. 

Desde que Rita entrou para a coordenação da procissão, o significado da sua experiência vai além do que vivencia dessa tradição. “É pra que isso nunca venha a morrer. Quão bom ela ficou na minha memória, que ela fique na memória de outros também. Porque eu já vi pessoas irem lá e chorarem. Irem lá e agradecerem. Então, não é só lavar o pé do santo no rio pedindo a chuva para a nossa lavoura e pra nossa vida. Mas é também um momento muito bonito de fé. E, cada um com a sua. Cada um no seu limite de fé, os idosos e as crianças (até de bicicleta), acompanhando. Nós saímos juntos e chegaremos juntos – o dia foi reservado pra isso. Vem quem quer, é aberta”, ela conclui. 

Maria Angela chama a atenção para dizer que sempre gostou das coisas de Deus, desde pequena. “É uma coisa minha. A gente ia nessas missas, nas reuniões, era o único lugar que a gente ia, se tornava um passeio. É gostoso lembrar porque é o que a gente tinha: as orações e a companhia das pessoas”. 

Sua fala me faz refletir e pergunto à Maria Angela: A fé é um exercício diário? A sua resposta me surpreendeu. “A fé é um exercício sim. Se eu fosse falar muita coisa, eu teria uns três dias pra falar. A gente vai passando por situações de doenças – até esses dias eu estava contando para uma pessoa, foi ontem – às vezes a gente pensa: eu não tenho mais jeito. Eu já passei lá no fundo do poço, mas Deus tem um propósito pra gente. Não é verdade? Ele sabe até onde a gente aguenta. Até onde a gente vai”. 

Maria Angela continua descrevendo e conta o seu testemunho de fé. “Esse ano, eu tive dengue – eu nunca tinha tido. Eu nem sabia se era dengue ou se era Covid – era uma coisa tão forte. Mas Deus está comigo, não é verdade? A gente ia lutando, lutando, na oração, com a oração, buscando, até que a gente pode. 

Quando chegou na semana da Páscoa, eu estava ruim, ruim, que eu não parava de pé. E aí, eu assistindo uma missa em Jerusalém – que a Canção Nova mostra o Santo Sepulcro de Jesus – e lá tinha um frei fazendo a oração, na Quinta-feira Santa, onde Jesus foi sepultado. Eu me apeguei, fui orando, orando, orando, e falei: Jesus está sendo sepultado hoje. Mas eu falava pra Jesus: eu vou ressuscitar com o senhor. Não sei que jeito, mas eu vou. Eu ruim na Sexta-feira Santa, parecia que eu ia morrer de tão ruim que eu estava. A minha filha mais velha me pegava e me levava para o hospital e eu voltava, tomava os remédios e aquela mesma situação, eu não parava em pé. Eu não tinha forças porque eu não comia nada, nada. 

Aí, eu chegava em casa. Eu lembrava do Santo Sepulcro que mostrou justo naquele dia, lá em Jerusalém. Eu falava: Jesus eu vou ressuscitar, o Senhor vai me ressuscitar. Senhor, faça a tua vontade – eu sou muito assim de falar pra Deus que faça a tua vontade. 

E aí, quando foi no domingo de Páscoa, eu queria ir na missa – eu gosto de ir na missa no domingo de Páscoa, o dia da ressurreição, né! Eu não pude ir. Eu não tinha coragem. Eu não tinha força pra ir na missa. Quando eu fiz a minha oração em casa, levantei da cama – eu tenho um altarzinho na sala – e fui lá e me ajoelhei e falei: Senhor, eu estou aqui. Eu não fui lhe receber lá, mas eu tenho certeza que o Senhor está aqui comigo. A minha fé diz que o Senhor está aqui comigo. E é assim que a gente tem que crer. 

E não demorou muito, a mãe da Eva chegou, a Bina chegou – minhas amigas de igreja – e mais uma outra que eu não me lembro agora. O que elas fizeram? Bateram no meu portão, eu me levantei me escorando pelas paredes e fui lá. Tia Bina olhou pra mim, falou: ‘Angela, o que aconteceu com você que você está desse jeito?’. Ela sabia que eu estava doente , mas não chegou de ver eu daquele jeito, né! 

Elas trouxeram flores pra mim de lá do altar da igreja. E o que elas falaram pra mim? ‘Nós comungamos por você, pela sua saúde’. Eu disse: obrigado Senhor. 

Então, quer dizer: Deus envia anjos pra nos alertar, pra nos ajudar, pra que aumente a nossa fé. Aquilo que a gente está fazendo e o que Deus está fazendo não é em vão. Não é verdade? Essa nossa fé, a gente tem que testemunhar essa alegria que Deus faz. Não é verdade? Passe o que passar”, disse. 

José Carlos conclui: “Pra quem tem fé, a esperança não morre”. 

Karina é uma mulher que presenciou a profissão de fé entre as mulheres da sua família. Perguntei à Karina: Você mantém a tradição da sua família. Como é ter nascido entre mulheres com tanta devoção e a prática da fé?

“Eu vou te contar um pouquinho da minha história, resumidamente. Eu tenho 35 anos. Eu perdi a minha mãe com 13 anos. Eu tive uma infância muito difícil, sem dinheiro e, eu me lembro da minha mãe, uma mulher de muita fé. E, foi isso que ela e a minha avó deixaram pra mim. Eu falo para as pessoas que eu tinha tudo pra ir pra qualquer caminho, menos seguir no caminho certo, como estudar — eu fui a primeira pessoa da minha família a fazer faculdade. Com 13 anos, eu fiquei órfã porque, além de ter perdido a minha mãe, meu pai arrumou outra pessoa e fez a vida dele. Eu fiquei morando com uma avó; depois eu morei com a minha irmã; depois eu morei com três tias diferentes; aí, voltei morar com a minha irmã. 

Eu segui o caminho – quando você fala de nascer de mulheres fortes – é porque a minha mãe deixou essa fé, a crença que é o único meio da gente viver e seguir o caminho do bem: é acreditar em Deus. Ela não pôde me deixar outras coisas, mas a fé que ela deixou, foi o que me movimentou pra chegar a ser quem eu sou hoje. 

Eu tenho a minha família, minha vida, minhas coisinhas, e nunca fui pro caminho errado, mesmo porque eu já tive muitas oportunidades. Eu sempre me lembrava dela, da imagem dela na igreja. Nessa comunidade lá da Santa Cruz, ela era muito ativa lá. Nós moramos ali, no sítio do meu avô Joaquim Martins, pai dela – marido da minha avó que partiu. Depois que minha mãe morreu, foi ela quem ficou comandando a procissão. Quando ela não aguentou mais, ela pediu ajuda pra Nice e pra Rita. Eu morei lá até os 11 anos, mudamos pra Artur Nogueira e a gente morou de aluguel.

A minha mãe sempre quiz comprar a casa própria, mas não deu certo. Essa questão da casa é assim: minha mãe sempre lutou pra ter uma casa própria e não conseguiu. Ela faleceu. Depois de quatro anos, a minha avó, mãe dela faleceu. Dividiu a herança de um pedacinho de terra. Nós vendemos. Já não era muita coisa e dividi com a minha irmã. Eu queria comprar uma casa pra realizar o sonho da minha mãe. E, não dava certo porque era pouco dinheiro. A gente encontrou um negócio que a pessoa queria vender rápido porque estava se separando da esposa e tal – deu certo de comprar essa casa. 

Pra ver como é que é: a casa que eu comprei, é na mesma rua da última casa que a minha mãe morou, antes de falecer. Tá lá minha casinha. Uma casinha de fundos, uma edícula com terreno. Depois que eu me casei a gente ampliou. A gente aluga lá e mora em outra cidade. Essa casa ninguém mexe, porque era a que a minha mãe queria, e pela fé a gente conseguiu. Ela não  conseguiu em vida, mas eu tenho certeza que onde ela está, ela conseguiu”, respondeu. 

Karina responde diante de minha pergunta: Qual é a importância de manter as suas raizes lá na comunidade bairro Correias? 

“O importante é essa questão de manter as tradições. Pra mim, parece que eu continuo com a minha mãe quando eu participo. Parece que a minha mãe e a minha avó estão vivas de alguma forma, seja na memória das pessoas, seja no coração, seja em cada detalhe. Que a gente nunca deixe isso se perder. Mas não só: todos que tem uma tradição na família, que mantenha e leve isso pra frente. Não deixe se perder. O importante é a gente parar a nossa vida, pelo menos uma vez no ano, pra se dedicar a isso, pra agradecer a Deus por todas as conquistas e pra lembrar dos entes que já se foram. Eu acho que pra mim, o que mais fica é esse momento de confraternização com as pessoas que você não vê há muito tempo. Lá, eu encontro pessoas que dizem: ‘Eu lembro de você pequenininha. E agora ver quem você se tornou’. Acreditar em Deus sempre! Que Ele move os caminhos, Ele move a vida. E fazer o bem”, concluiu.

Comunidades Rurais

Navegação de Post

Previous Post: Bairro Tatu – Uma conversa com Diva Moraes

Related Posts

  • Bairro Tatu – Uma conversa com Diva Moraes Comunidades Rurais
  • A Comunidade São Francisco de Assis, bairro dos Frades completou setenta anos Comunidades Rurais
  • Folia de Reis São Francisco de Assis participa de missa na Capela de São Francisco de Assis no bairro dos Frades, em Limeira Comunidades Rurais
  • Foto da arquiteta Pietra Menconi mostrando a escadaria e as janelas dos aposentos do casarão datado de 1820 - o prédio mais antigo da cidade de Limeira
    Comunidade bairro Tatu – uma conversa sobre a família de Marco Spagnol  Comunidades Rurais
  • Procissão e Missa da Exaltação da Santa Cruz – bairro Correias – Engenheiro Coelho (SP) Comunidades Rurais
  • Bairro Tatu, uma conversa com Luiz Denadai Comunidades Rurais

Deixe um comentário Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rádio Pires Rural

As memórias da Colônia Carandina e do time Carandina Futebol Club é revivida por três ex-moradores do local; Adriano Colombari e os irmãos Nilton e Alex Barbosa Oliveira.
Os Osvaldo Luis e Jurandir, morando no bairro dos Pires, em Limeira (SP), mantém a cultura alimentar para não perder a identidade mineira
Paulo Nakanishi e sua esposa Emilinha são referência no cultivo da fruta cambuci
Romaria de Cavaleiros - Bairro Piraporinha a Tujuguaba, Conchal (SP)
Cia. de Reis Missão Sagrada
Nutricionista Valéria Paschoal

LIVE: Mídias Hiperlocais: memória e sustentabilidade

Copyright © Jornal Pires Rural 2024 .

Powered by PressBook News WordPress theme