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Foto da arquiteta Pietra Menconi mostrando a escadaria e as janelas dos aposentos do casarão datado de 1820 - o prédio mais antigo da cidade de Limeira

Comunidade bairro Tatu – uma conversa sobre a família de Marco Spagnol 

Posted on junho 23, 2025junho 23, 2025 By Adriana Fonsaca Nenhum comentário em Comunidade bairro Tatu – uma conversa sobre a família de Marco Spagnol 

As famílias Spagnol, Piccin, Batistela, Denadai, Trevisol, Covre, Rossi, Locali, Degaspari, Padula, Quitério, Zanini, Pântano, Pierino, entre tantas outras do bairro do Tatu em Limeira (SP) eram fazendeiros, sitiantes, comerciantes, industriais, portanto empregavam muita gente – pelo Censo de 1950, a população era de 2.589 habitantes. O bairro dispunha até de serviço dos correios e Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, extinto em 1953. Limeira tinha uma agricultura forte e o investimento que vinha da terra já começava alimentar a indústria.  

O bairro surgiu às margens do Ribeirão Tatu como uma colônia da Fazenda Tatu, pertencente ao Capitão Luís Manuel da Cunha Bastos. Após o seu falecimento em 1835 as terras foram vendidas, mas a Fazenda Tatu com o icônico casarão datado de 1820 – o prédio mais antigo de Limeira – permanece com a família Spagnol. A fazenda foi adquirida por Marco Spagnol um imigrante italiano que outrora foi meeiro na Fazenda Tatu na época da cultura do café. 

Dentre aqueles que davam emprego no bairro Tatu estava a família de Marco e Clarice Zanini Spagnol e seus filhos: Vitório, João, Domingos, Alcídio, Mário, Orlando, Jandira e Olindo.

Vista ao longe da sede da Fazenda Tatu com as árvores ao lado das casas e área para o plantio de cana-de-açúcar - Foto Jornal Pires Rural
Fazenda Tatu ou Fazenda Spagnol, vista da área das construções (Foto:Jornal Pires Rural)

Conversei com Marlene Spagnol Abarca e seu irmão Armando Spagnol, netos de Marco e Clarice, nas dependências da igreja de São Sebastião, localizada no bairro. A intenção é registrar as memórias sobre a convivência com aqueles que construíram a comunidade e a sua identidade.

Vista de longe a Igreja de São Sebastião, no bairro Tatu em Limeira (SP) Foto Jornal Pires Rural

O bairro atraía os trabalhadores da região. “A fazenda nossa derrubou mais de 20 casas de trabalhadores – todos os sitiantes que tinham aqui, tinham morada aqui e foram vendendo e derrubando. O Batistela tinha, o Padula tinha e a usina (de cana-de-açúcar) derrubou tudo. O Padula era um sítio de 30 alqueires com muitos funcionários para produzir laranja e gado”, contou Armando. 

Marlene conta que não tinha maquinário, precisava exclusivamente da mão de obra. “Quando plantava cana não tinha muitos tratores. O Armando puxou muita cana pro engenho. O plantio, o corte, era tudo manual; precisava de muitos funcionários”. 

Marco Spagnol veio com seis meses de vida da Itália, Província de Udine, Veneza. Marco foi meeiro na fazenda e décadas depois adquiriu a propriedade e “batizou” com seu sobrenome, Fazenda Spagnol. O neto Armando conta o que é o sistema de trabalho como meeiro. “O meeiro funciona assim: o patrão cede a terra, você planta, cuida da lavoura, ajuda nas despesas ou se for a terça, que você faz tudo e dá um terço pro dono da terra”. 

Mas não foi como meeiro que Marco Spagnol comprou a Fazenda Tatu da família Jacon. Armando conta o que estava acontecendo no bairro do Tatu na época da Primeira Guerra Mundial.

“A época da Primeira Guerra Mundial, parou tudo. O sítio aqui do Degaspari, plantavam banana e eles usavam a banana pra fazer pólvora, inclusive já teve aqui, uma fábrica de fazer pólvora. O meu avô cuidava da banana e entregava para os caras fazerem a pólvora. O que aconteceu? Do outro lado aqui (da igreja) tinha o Piti (Luís Pântano), que tinha o armazém pro lado de lá da estação (de trem) e o meu avô tinha muito conhecimento com ele. Aí, surgiu de comprar o sítio lá no (bairro) Jaguari porque era muito barato – a propriedade vizinho da família Marson e Pertile. O meu avô comprou lá. Nós também tivemos um casarão lá, porque a família estava grande e a laranja (citricultura) estava começando. 

Lá (sítio do Jaguari) estava abandonado, meu pai conta que pra entrar no sítio precisava ir roçando e desbravar pra chegar na casa. Eles foram desbravando, plantando laranja, algodão. Naquela época, o algodão era muito requisitado por causa tanto do tecido, como para fazer pólvora. A Guerra já tinha passado, mas sempre precisou de pólvora. 

A família se mudou para o Jaguari onde não tinha nada, nada. Precisou construir e tinha uma coisa, eles chegaram lá, só desbravaram pra começar. Esse Piti, que tinha o armazém aqui, era compadre do meu avô. E, às vezes, as pessoas dos sítios por aí, o cara comprava para o ano inteiro, não tinha dinheiro, então, dava como pagamento o animal, queijo, mel. O Piti falou pro meu avô: ‘Eu tenho uma dupla de burros aqui e você leva pra lá, depois você vai me pagando’. Foi. Chegou lá, tinha muita cobra cascavel, era beira de rio e muita pedra. Daí ele perdeu um dos burros e esse Piti arrumou mais um. 

Meu pai Mário, já estava casado. O tio Joaninho, moravam todos lá, depois construíram mais uma casa do lado e eu fiquei um tempo lá. Os filhos mais velhos, o João e o Vitório vieram os dois pra Tatu porque compraram um terreno vazio com um barracãozinho, aqui atrás da igreja (São Sebastião) e construíram a primeira casa aqui da família. 

Eles construíram a casa com a intenção de vir mais gente e montaram uma oficina pra negócio de bico de arado de tração animal, ferrar carroças – a habilidade do italiano. E foi. Estavam ganhando bem e construíram a casa que ficou os três filhos mais velhos e famílias. O barracão ficava ao lado. No Jaguari, ficou o nono com alguns filhos: o meu pai Mário, o tio Lando, Olindo, o Alcídio e a tia Jandira.

Aqui começaram fazer canivete na mão (artesanal) e aí, não vencia. Vinha um pessoal de São Paulo, aqueles marreteiros buscar o canivete Cotns. Construíram três casas e o barracão”. 

Marlene Spagnol Abarca e seu irmão Armando Spagnol, no interior da igreja São Sebastião, no bairro Tatu (Foto:Jornal Pires Rural)

Como os negócios iam bem, o filho Mário também deixou o sítio e foi para a indústria. “Veio meu pai pra cá, mas ele ainda trabalhava no sítio do Jaguari. O Armando e a Adélia nasceram lá e mais dois irmãos nossos nasceram aqui em Tatu”, conta Marlene. 

Quando Mário se mudou em definitivo pra Tatu, foi arrumando meeiro pra trabalhar no sítio do Jaguari e quando chegava a época de colheita da laranja e algodão eram contratados os turmeiros da cidade. “Aqui foi uma explosão tremenda com todos os oito filhos trabalhando na indústria metalúrgica e a agricultura mantida no sitio do Jaguari”, afirmou Armando. 

“Em 1959 surgiu a oportunidade deles comprarem a Fazenda Tatu que até hoje fica numa parte da família (netos) e foi pago com trabalho”, contou Marlene. 

Casa no sítio do bairro Jaguari (Fotos:Arquivo Pessoal)

Um casamento no sítio Jaguari, depois viriam muito outros no Casarão da Fazenda Tatu: “A gente reunia no final de ano com a família, no Ano Novo lá no casarão da fazenda e, ali também tinha muitos casamentos da nossa família – era um casamento atrás do outro. Para a festa do casarão se matava boi, porco e fazia o churrasco servido com chopps. Os casamentos também eram todos assim: boi, churrasco, salada de tomate, bolo e bala”, recorda Marlene. 

Armando explica como se deu a negociação: “Como tinha o sítio do Jaguari, quando surgiu a oportunidade de compra da fazenda, a fábrica ia indo bem. Meu pai fala o seguinte: ‘Eles fizeram assim, vamos comprar, qualquer coisa, já tinham deixado até o sitio do Jaguari em pé pra vender se precisasse’”.

A família comprou a fazenda em 1959, Mário e Luiza Santarosa Spagnol mudaram-se pra lá no fim do ano, mas não tinha a safra de cana-de-açúcar ainda. “Comprou a fazenda em 1959 – a mãe mudou e eu nasci em 60, lá”, afirmou Marlene. 

Armando se lembra das conversas sobre ir morar na fazenda:

“O meu pai comentou em casa com a minha mãe: ‘Olha, não sei se nós fizemos uma loucura. Compramos a fazenda do Jacon’. Eu morava aqui na esquina, atrás da igreja. Ele falou: ‘Nós temos uma reserva e qualquer coisa, o Jaguari está mais ou menos engatilhado se precisar vender lá, pra completar aqui’. 

Pra você ver como é que é a coisa, daquele ano que compraram a fazenda já fazia a pinga pra vender para engarrafamento para as indústrias Tatuzinho, Três Fazendas e 51 – eles vinham buscar aqui. 

Quando comprou, a fazenda tinha 105 alqueires e juntou uma herança da minha avó Zanini. Aí tinha um outro lado, lá no fundo, que ficou com um do Eugênio Jacon (dono do frigorífico na avenida Campinas, na Ponte Preta) – eram três matrículas, ele vendeu pra nós. Ao todo tínhamos 150 alqueires, uma parte de laranja e tinha cana. A fazenda começa na URCA (prédio da União Rural Católica), na escola e posto de saúde, segue vizinho à estrada de ferro até o Horto Florestal e sobe dentro do bairro do Tatu e sai lá na fazenda dos Bardini”.

Armando foi para a Fazenda Tatu com 10 anos de idade e começou trabalhar aos 11 anos. “Lá devia ter umas quinze ou vinte famílias nessa época, depois aumentou mais a área de produção, inclusive, arrendou a área dos Bardini. Quando comprou a fazenda, a pinga Spanholinha valia centavos. No mesmo ano, na primeira safra, vendeu a 2 Cruzeiros o litro no atacado! Não precisou vender nada nem usar o dinheiro da indústria”, afirmou. 

“Foi onde eles conseguiram pagar a fazenda”, afirmou Marlene. 

Rótulo da Caninha Spanholinha, produzida e engarrafada no engenho da Fazenda Spagnol, teve sua fabricação encerrada em 1973 (Foto:Arquivo Pessoal)

O mercado influenciou o aumento do valor da pinga. “A pinga era vendida no atacado para o engarrafador e não tinha valor. No outro ano: bum! E, foi assim, em alta por uns quatro ou cinco anos. Aí, sobrou dinheiro e compraram o sítio onde hoje é a (empresa) Lajes Tatu na rodovia Anhanguera. Aí, o meu primo Sérgio, filho do Vitório estava estudado, fez Economia e chegamos montar o engarrafamento da pinga. A produção do engenho foi encerrada em 1973 com a Caninha Spanholinha. Depois a gente comprava pra revender – foi pouco tempo de engarrafamento”, contou Armando. 

Uma família visionária, um pouco de sorte e que diversificava os negócios com o engenho, a indústria, o algodão e a citricultura; bebia em  fontes consideradas os motores econômicos do país. Segundo Marlene, as decisões tomadas tinha uma liderança. “Na fazenda, o cabeça era o meu pai Mário e na indústria era o Vitório e o filho Sérgio. E todos os irmãos se reuniam na Indústria Marco Spagnol e a Fazenda Tatu: Agrícola Industrial Marco Spagnol. O papel do pai Marco Spagnol perante os negócios da família era o apoio. Foram os filhos, os visionários. Ele apoiou! Sim, ele apoiava, via que os filhos estavam prosperando e indo bem”, Marlene.

Marco Spagnol gostava de tomar um vinho, estar com a família, encontrar os amigos no bocha e andar a cavalo. “A gente reunia no final de ano com a família, no Ano Novo lá no casarão da fazenda e, ali também tinha muitos casamentos da nossa família – os meus tios tiveram nove filhos, minha família são seis, os mais jovens tiveram quatro filhos. 

O tio Lando e o tio Olindo se casaram por último e a tia Jandira, tiveram menos filhos – era um casamento atrás do outro. Tanto que teve sobrinho mais velho do que tio.  

Para a festa do casarão se matava boi, porco e fazia o churrasco servido com chopps. Os casamentos também eram todos assim: boi, churrasco, salada de tomate, bolo e bala. A família não era de sentar à mesa, mas todos presentes. O prazer dele era andar a cavalo em tudo quanto era lugar, ele adorava – esse era o divertimento dele até os 95 anos”, contou Marlene. 

Marco Spagnol e família (Foto:Arquivo Pessoal)

Todas as famílias grandes que moravam nos sítios ao redor do bairro Tatu se encontravam aos domingos ali, nos bares e Marco sempre estava lá. “Vinham na missa – aqui na igreja não cabia gente quando (ainda) era uma capelinha. Depois, quando o vô já morava lá no Jaguari, o pessoal do sítio ajudou e fez a nova igreja. Depois, daqui fizeram a igreja lá no (bairro) Jaguari. Inclusive, na época, tinha o bar aqui embaixo que era do Trevisol, com campo de bocha também. E, pro lado de cima, a casa da esquina (que está fechado) era do Moraes e tinha outro campo de bocha. A URCA veio bem depois e o campo da igreja também”, contou Armando. 

Marco Spagnol morou na Fazenda Tatu somente quando era funcionário. Depois que voltou do sítio do Jaguari para o bairro do Tatu, morou na casa grande da família, na rua detrás da Igreja São Sebastião. “Ele morou nessa casa aqui com o filho Vitório até o último dia. Quem foi pra fazenda foi o meu pai Mário, o tio Orlando, o Alcídio, o João e o Olindo – os cinco ficaram lá. Do lado da indústria morava o Domingos. A tia Jandira também morou antes de comprar a fazenda e depois foi pra lá. O marido dela, o Pedro Denadai trabalhava na indústria, na seção de produção”, contou Marlene. 

Armando reconhece a dedicação do pai nos negócios da família: “Quem construiu o primeiro salão da fábrica foi o meu pai e o tio João. Quando ele (pai) ficava lá no Jaguari, quem tomava conta dos negócios era o meu tio Vitório com o tio Joaninho. Eles eram muito minuciosos com o negócio do algodão pra negociar ali em Americana, na indústria de beneficiar. E, quando os tios vieram pra cá, quem ficou lá (Jaguari) foi o meu pai, ainda solteiro. O primeiro ano que ele assumiu lá, mudou tudo – precisou arrendar sítio do lado pra produzir mais, contratava o pessoal da cidade e dos sítios vizinhos. Ele negociava e tocava a laranja igual. Foi um sucesso, porque ele tinha uma visão espetacular mesmo não tendo estudo”. 

Marlene explica a dificuldade do avô em estudar os filhos:

“O pouco que o meu pai aprendeu foi porque o meu avô dava pouso para a professora – ele aprendeu com a professora dentro de casa à noite. Ele não foi na escola. O meu avô tinha instrução pelo menos pra assinatura. 

Tanto que o meu pai falava quando eu era criança: ‘Cubica pinga’- e depois eu descobri que era o volume. Ele fazia o volume, a capacidade de litros de líquido dos tonéis, de cabeça, sem aprender a matemática na escola. 

Inclusive, quando ele veio pra indústria aqui, toda a parte do cabo de canivete, era feito de chifre de boi. E tinha um rapaz que estragava 50% do material na serra. E meu pai vendo, trabalhando, foi chamar a atenção do cara e ele quiz encrespar. Ele falou: ‘Levanta daí e fica do lado’. Meu pai ajeitou, amolou a serra, porque a serra tem que estar com todos os dentes iguais se não ela tripida e racha. Ele pegou uma parte do esmeril, centrou, pegou um triângulo, rolou tudo direitinho e foi fazendo, fazendo – e o cara vendo. Foi fazendo. No prazo de duas horas ele fez mais do que o cara fez em uma semana e não perdeu nada. O cara falou: ‘E agora?’. Meu pai respondeu: ‘Agora você vai pro escritório que a sua conta está pronta, pode ir embora’. Meu pai ficou uns par de anos trabalhando na serra, ajudando organizar a indústria”.  

Na indústria, eles chegaram fabricar ioiô de ferro, de chapa – agora feito de madeira, de plástico. “Eles tinham uma prensa aqui que servia pra fazer o aro da roda de carro. Inclusive, os caras da indústria Fumagalli (Industria de Rodas Fumagalli), pessoal que foi funcionário da Machina São Paulo, vieram aqui pra querer fazer, porque deu aquele problema mundial; mas não deu certo. Veio também o pessoal da Freios Varga pra fazer o burrinho de carro, o freio – eu cheguei a ver o projeto e não deu certo também. Eu acho que, como a parte de fabricação de canivete e faca já estava indo muito bem, eles preferiram por pá e enxada, coisa que era da região e ficaram com medo de arriscar em outro projeto de produção. A indústria ainda existe e está com a família do tio João”, contou Armando.

As memórias da fazenda trazem marcas para Armando:

“A primeira fazenda que teve uma carregadeira de cana foi a nossa. Eu trabalhei lá e fiquei até o final tomando conta do fermento. Eu tenho uma lembrança do engarrafamento (risos) – o corte no pulso e no pé que ficou preso na esteira. 

Aqui na mão estourou uma garrafa de pinga, porque as garrafas vinham direto da fábrica passava por lavagem: punha aqui, ia e dava a volta e quando chegava limpa, eu pegava e punha na caixa pra depois engarrafar a pinga. Eu cheguei, fui pôr uma, tava um tanto assim de líquido e já estava tampado e eu pá, peguei a outra e vupt! Quando eu levei lá longe, ela estava trincada, quebrou e eu puxei a mão. Ela virava, né! Pegou. Eu tinha 13 anos. Eu apertei aqui no corte, tinha uma moça que morava e trabalhava ali, o apelido Toto (Mercedes), eu falei pra ela: põe alguma coisa pra parar esse sangue. Voava sangue daqui, lá. A gente usava muita borracha de caminhão, câmara de ar pra amarrar as mangueiras – ela amarrou bem amarrado aqui, colocou um pano, parou. Me levaram pro hospital Santa Casa num sábado cedo e, tinha a festa no sábado e no domingo”, lamentou Armando. 

A primeira escola do bairro era do lado da igreja, com apenas duas salas, onde Armando estudou. Marlene, é da primeira turma da atual escola, inaugurada em 1970.

Marlene conta sobre a festa de São Sebastião no dia 20 de janeiro.

“Eram festas enormes no sábado e no domingo e serviam as carnes de porco, de galinha, aquelas festas antigas; tem lugares que fazem até hoje. Iam atrás das prendas. Tinha leilão aqui do lado desse barracão (da igreja), não tinha esse salão de festas, eram dois coretos. O de cá, era um coreto duplo, onde fazia o leilão com o cantador de lances. E, do outro lado, tinha o espaço onde fazia o churrasco, os assados, com um forno grande. Vinha a orquestra Henrique Marques e a orquestra Arthur Giambelli tocar em todas as festas, no domingo. Que festa maravilhosa! No sábado à noite tinha a quermesse, funcionava o serviço de auto falante, tinha correio elegante. A missa era no domingo de manhã. A procissão acontecia no domingo à tarde. Mas acontecia também a Festa Junina e aquelas Festas Americanas nas casas”, contou Marlene. 

Armando explica o que é uma Festa Americana: “Vamos supor; vamos reunir no próximo sábado na casa de fulano. As mulheres levavam o prato de salgados e os homens levavam as bebidas. Na minha época a gente já tinha o toca-fitas K7. Quantos casamentos saíram dali! Olha! Na URCA (União Rural Católica), eu era molecão e tocava ali, fazia baile quase todo sábado com música ao vivo. Tinha os conjuntos musicais: os Kingston de Limeira, Blues Bird, os Rebeldes, o nosso Os Inseparáveis – e acabamos nos separando. Eu tocava guitarra, violão. O José Carlos Marquetti fazia o vocal e outros quatro que tocavam; o Oscar Spagnol tocava guitarra solo; o Dorival Denadai tocava o baixo e o Odécio Spagnol a bateria”, contou. 

Encenação de peça de teatro realizado na URCA (União Rural Católica) (Foto:Arquivo Pessoal)

A URCA tinha uma diretoria e chegou a ter o pagamento de ingressos, venda de mesas para a pista de dança e aluguel para festas de casamentos. “A festa do meu casamento foi ali – comporta umas 300 pessoas”, contou Marlene. 

“Essa URCA surgiu porque a gente fazia o seguinte: como tinha bastante gente no futebol, tinha o Sebastião Soares que morava lá no Figueira (via Anhanguera) e ele trabalhava pra DER (Departamento de Estradas das Rodagens), combinou lá e veio com a pá niveladora e fez o campo de futebol. Aquele tempo era tudo no tempo da amizade, inclusive eu ajudei puxar grama”, contou Armando.

Algumas formações do time de futebol do Tatu: Brasil Futebol Clube (Fotos:Arquivo Pessoal)

A URCA foi construída nos anos 60. A doação da área para a construção da escola e do posto de saúde do bairro Tatu, foi uma doação da família de Marco Spagnol, pois a área doada fazia parte da Fazenda Tatu. “Foi cedido para ser usado igual a escola e o postinho de saúde – a prefeitura construiu o prédio”, contou Marlene.

“Na verdade, nós começamos fazer o prédio com um rapaz que se dizia pedreiro. Inclusive a madeira nós ganhamos da Companhia Paulista – onde é o Horto (Florestal) hoje. Eu fui buscar de caminhão. Mas daí, a construção foi deixada mal acabada e ficou parado. No tempo da primeira gestão (1958-1961) do prefeito Jurandyr (Paixão de Campos Freire), ele veio aí e terminou, por que tinha muita gente aqui no bairro, na época. Mas a URCA foi parando porque veio uma geração que começou dar muita briga e quebradeira” , explica Armando. 

Time Brasil Bocha: 1ª fileira da direita pra esquerda: Antônio, Oscar, Luis, Jerson, Walter, Wanderi, Odilon. 2ª fileira: Olindo, Sidinei, Adelinde (in memorian), José Carlos. 3ª fileira: Marcos (in memorian), Armando, João, Paulo, Pedro, Luís e Bigode (Foto:Arquivo Pessoal)

A comunidade manteve a tradição do jogo de bocha como passatempo e um motivo para o encontro com os amigos em vários pontos no bairro. O jogo foi tão levado a sério que fundaram o Brasil Bocha onde se destacou como um bom time de bocha, ganhando campeonatos com investimento em treino, campo e divulgação.

“O Clube Brasil Bocha começou nos anos 90 e já tinha o campo de futebol amador Brasil Futebol Clube. Então, aqui formou o Brasil Bocha – só tirou o Futebol Clube. Funcionava no clube nosso URCA – União Rural Católica (não era ligada à Igreja Católica). Nós ficamos campeões duas vezes, competindo com os clubes do município. Jogava o time do Nosso Clube, o time Ítalo, o time Gran São João, o time Estudante, o time Funcionários, o time Paulistano; era uma boa turma. Inclusive o primeiro campeonato que ganhamos foi em cima do Nosso Clube, aqui, em casa. 

O segundo título foi lá no campo do Independente (hoje está fechado). Essa turma aqui seria o Brasil B – olhe o B no uniforme (foto acima), e junto tinha o A. Tínhamos dois times: o A e o B. Tanto que o A, acho que nunca ficou campeão. O B ficou campeão duas vezes. Quem cuidava desse campeonato era a liga de futebol amador. As disputas aconteciam a nível municipal tanto a bola como bocha.

Tem que ter muito treino. É a mesma coisa de uma bola que tem que ter uma equipe bem entrosada e bem treinada, porque é competição de ponto. Ela começa de 2 a 18 – quem faz 18 pontos primeiro, ganha. Vamos supor que cada jogo eram oito pessoas que jogavam – quatro e quatro. Dois campos: começava dois lá e dois aqui, depois mais dois. Eram oito partidas, quem fazia mais partidas ganhava aquela rodada por pontos. Como bola, cada vez que você vai ganhando mais pontos até o final, ficava campeão. 

Então, se você tem uma equipe que tem equilíbrio emocional, porque tem muita gente que, às vezes, está jogando bocha assim, normal, quando entra num lugar desse não consegue se controlar, fica muito nervoso”, Armando destacou. 

Ele explica em que momento do jogo exige controle emocional do jogador: “No momento, vamos supor: você sai jogando, é quatro bocha cada um: a vermelha e a branca. Então, a branca sai jogando, conforme o tipo do ponto que fica lá – porque o ponto de partida é o pequenininho (fala bolim) e cada bola vale dois pontos. Então, você tem que sempre derrubar o do adversário e com quanto mais bolas você puser perto do pequenininho, chega a fazer até oito pontos no máximo. Então é dois, quatro, seis, oito. Vai muito do equilíbrio, às vezes a pessoa fica nervosa. Vamos supor: ele vai empurrar a bocha do outro lá, ele erra. Ele vai jogar ponto e não vai ter o cálculo certo – é preciso ter um cálculo pra soltar pra ela ir até perto do pequeno. Exige muito treino. É treino e equilíbrio emocional, na minha opinião”. 

A igreja como ponto de encontro (Foto:Arquivo Pessoal)

A relação da comunidade com a ferrovia era intensa porque o transporte chegava de manhã, à tarde e à noite. A estação ferroviária de Tatu foi inaugurada em 30 de junho de 1876 pela Companhia de Estradas de Ferro e, a eletrificação da linha aconteceu em 1920. Os dois irmãos fizeram uso do transporte ferroviário diariamente para estudar, pois o trem que saía às 11h30 levava os alunos pra estudar em Americana. “A minha turma aqui estudou em Americana por causa do horário – ia e voltava de trem. Mas no ensino médio tivemos que fretar ônibus porque foi diminuindo a oferta de vagões de viagens, pra entrar os vagões cargueiros, em 1974”, disse Marlene. 

Armando estudou mais na cidade de Limeira, ia de perua Kombi com o rapaz que tinha o armazém Denadai. “Eu fiz até o terceiro ano do curso de Contabilidade lá na antiga escolinha Santo Antônio, à noite. O Curso Superior Contábil fiz no Dom Pedro em Americana”, contou Marlene. 

As curiosidades, os acontecimentos bons de passar infância e juventude com a estação de trem à sua porta jamais serão esquecidos: “A gente ia na estação ver o trem passar, porque era um ponto de encontro. Era um ponto de encontro também no bar do Toninho Trevisol, no bocha, no campo de bola e na frente da igreja”, comentou Marlene. 

Pe. Geraldo, a esquerda, Marco Spagnol e outro padre que vinha de Campinas (SP) (Foto:Arquivo Pessoal)

A juventude dessa comunidade estava sempre reunida em grupos e sem dúvida alguma isso fez a diferença na afetividade dos amigos: “Aquela época a amizade era prioridade. Tínhamos amizades com todo mundo. Tinha respeito por todo mundo. Todos se conheciam. Inclusive, nós tínhamos a banda e a gente quase não parava aqui porque ia tocar pra fora. Quando não tinha nada pra fazer de domingo, com 18 anos, ia na praça de Limeira. E, aqui tinha o padre Geraldo José do Vale, muito apegado com a turma. E, como nós não parávamos muito aqui, as meninas mocinhas foram reclamar com ele. Um dia ele nos chamou, os cinco aqui (na igreja): ‘O que está acontecendo que vocês não dão atenção pra comunidade?’ Aí, voltamos a ficar de domingo aqui”, disse Armando. 

Marlene conta sobre a sua juventude: “O meu sogro quando se casou já era funcionário da Companhia Paulista – ele veio transferido pra cá, tinha seis casas para os funcionários. Os pais do meu esposo, Odilon Abarca Miranda e Margarida Herrera Abarca, vieram pra cá quando o meu marido, Paulo Sérgio Abarca, era moleque. Meu sogro era chefe de estação em 1969 – quando acabou a Companhia Paulista e entrou a FEPASA. Ele ainda ficou muitos anos trabalhando na FEPASA.  A minha turma não ia na praça em Limeira porque a gente namorava, então, se encontrava. Quando criança brincava aqui na frente da igreja, ia no bar, no campo de futebol, ia na estação que era o ponto de encontro – esse era o nosso lazer. Tinha também os bailinhos, nas festinhas americanas e eu tinha que ir com a tia Rosa, porque minha mãe não ia e não deixava (ir sozinha)”.

Os irmãos convivem uma vida inteira na comunidade marcada pela ferrovia e têm gravado na memória o barulho da buzina do trem e da máquina chegando. “Inclusive, até hoje, quando o trem passa aqui na porteira de dia, eles dão três, quatro puxadas”, comentou Armando. “Agora buzina muito, antes não buzinava tanto”, destaca Marlene. Armando explica: “Antigamente tinha a porteira que era fechada quando o trem ia passar, por isso eles não buzinavam. Agora, como não tem mais, eles buzinam. Antes, só buzinava quando ele parava aqui. Aí, o guarda tinha uma bandeirinha verde e um apito; o trem dava duas buzinadas e saia ‘theco, theco, theco’”. 

“Quando era a Maria Fumaça, lembra?”, Marlene chama a atenção. Armando explica: “Quando acabava a energia: vamos supor, que estava um tempo de chuva e acabava a energia e ficava um dia, meio-dia sem energia, então, eles usavam a máquina a vapor”. Ela continua: “E depois teve a diesel também. Você pegou mais a Maria Fumaça do que eu”. Ele completa: “Se você ficasse com a janela aberta e estivesse com camisa de manga comprida sujava tudo (risos)”. 

“Eu peguei mais a (máquina) elétrica. Outra coisa: quando a gente estudava em Americana, uma turma estudava de manhã e a outra ia à tarde. Como o trem demorava, eu levava marmita para aqueles que estudavam de manhã almoçar na estação pra esperar o trem que chegava bem tarde, às 14h30 – os alunos da tarde levavam marmita para os da manhã. E a gente brincava na estação pra esperar o trem pra voltar, ali a gente brincava, fazia lição. Os chefes deixavam a gente ficar dentro da estação numa sala fechados, pra não ficar na rua. Só abria a sala na hora que o tem chegava. E, como tinha as professoras que davam aulas e vinham de Rio Claro (SP) de trem, elas ajudavam a gente fazer a lição. E depois, a gente brincava de queimada, de teca, enquanto esperava, porque ali também tinha um jardim. Era uma delícia”, Marlene destacou.  

No retrato lê-se o registro caligráfico: “Lembrança da instalação da “Liga do Menino Jesus”, na Capela de S. Sebastião do Bairro de Tatu, no dia 28 de Agosto de 1938” (Foto:Arquivo Pessoal)

Armando lamenta: “A comunidade, hoje, não tem mais ninguém”. Marlene explica: “É o tal negócio: eu tenho três filhas. Onde estão as minhas filhas? Estão na cidade. A mais nova voltou, mas só vem pra dormir. Os filhos não ficaram como nós ficamos, eles tiveram (outras) oportunidades de trabalho”. A versão de Armando também tem uma explicação econômica: “A usina comprou e arrendou muitas terras então, acabou os sítios que tinha e, os mais velhos foram falecendo”. 

Marlene e Armando continuam na comunidade onde nasceram tecendo o roteiro de suas histórias, com as memórias e as adaptações que a atualidade exige. Ele possui uma indústria voltado ao mercado Pet e Marlene segue aposentada e atuando na Comunidade São Sebastião. 

“No meu caso, eu nunca quiz sair daqui. Meu marido falava de sair porque eu sempre dei aula em Americana, sou professora aposentada no Colégio Presidente Kennedy (agora Heitor Penteado). Meu esposo comprou em sociedade, uma época, a fábrica Napoli do pessoal do Padula que também fazia faca, canivete – fecharam. Agora ele só trabalha com bainha de canivete, de faca”, revela.

Armando e Marlene são proprietários da Fazenda Spagnol juntamente com outros sócios. Ali, eles mantém a casa com as memorarias familiares onde seus pais construíram a morada ao lado da casa símbolo que guardam memórias da cidade de Limeira – pessoas constroem símbolos que edificam nossas memórias.

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